sábado, 31 de janeiro de 2009

A POESIA


Disse Valéry que "a poesia é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido" (citado por Giorgio Agamben).

Que imagem tão feliz da união do corpo e do espírito!

A prosa, evidentemente, nunca é só sentido, como qualquer estilo forte o demonstra. Mas é preciso que a nossa atenção seja mobilizada pelo ouvido, esse órgão religioso e nocturno que une, em vez de separar, como a visão, para todo o nosso corpo disputar à inteligência o absoluto.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009


Astorga (José Ames)

O INTENDENTE


O castelo de Nicolas Fouquet (Vaux-le-Vicomte)


"Arranjo um gerente, ou um intendente. As coisas que possuo já não estão diante dos meus olhos; são representadas num livro de contas; e é aí que as coisas começam a correr mal. O gerente ganha à minha custa de mil maneiras. Vende mal e dar-me-á mil razões; a verdadeira razão é que ele se associou com o comprador e recebe um prémio por todos os maus negócios que faz. Paga os trabalhos muito caro pela razão de estar feito com o empreiteiro. Repara, faz novo, porque, por um lado, é comerciante dessas coisas que compra para nós. Coisas inúteis? De modo nenhum. Ele prova-nos que são úteis. E nós acreditamos: porque é para acreditar nele que lhe pagamos."

"Propos d'Économique" (Alain)


Esta é, segundo Alain, a maneira de ser rico sem preocupações, sem ter de vigiar de perto o seu cabedal e as variações atmosféricas ou de mercado que o podem pôr em risco e sem ter chatices com os sindicalistas. É isso que vemos continuamente porque os ricos que trabalham e aplicam o seu engenho contam-se pelos dedos. Foi por esse absentismo que se perdeu a aristocracia europeia, arruinada pelos seus intendentes.

Hoje vemos, ampliada pela crise, a devastação causada por esta mentalidade. O Estado, como o maior dos rentistas, é o que mais oportunidades oferece aos novos intendentes.

Luís XIV mandou prender o seu ministro das finanças, Nicolas Fouquet, quando viu que o luxo em que este vivia ofuscava o do próprio rei.

E ainda há quem pense que os ricos preguiçosos são o inimigo de classe...

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009


(José Ames)

O FANATISMO


A Guerra dos Trinta Anos


"O Terror de Robespierre mostrou a Kant que, mesmo sob o signo da liberdade, da igualdade e da fraternidade, podiam ser perpetrados os crimes mais hediondos, crimes tão abomináveis quanto os que haviam sido outrora, na época das cruzadas, da caça às bruxas ou da guerra dos Trinta Anos, em nome do Cristianismo. Kant elaborou uma teoria a partir da história do regime de terror da Revolução Francesa. Esta teoria, nunca é de mais repeti-lo, é a de que o fanatismo é sempre um mal e incompatível com o objectivo de uma ordem social pluralista; é nosso dever opormo-nos ao fanatismo sob qualquer forma - mesmo quando os seus fins sejam eticamente irrepreensíveis e, sobretudo, se esses fins forem os nossos próprios fins."

"Conferência proferida na Rádio da Baviera em 1961" (Karl Popper)


Os que mataram, durante o Terror de 93 e 94 do século dezoito, pagaram, ao menos, o seu zelo criminoso com a própria vida, visto que também eles puseram a cabeça na invenção do doutor Guillotin. E como para justificar a tese freudiana dum crime inexpiável na origem da cultura, os jovens da horda primitiva matando e devorando o pai, a Revolução Francesa é um acontecimento de fundação como o foi o nascimento de Roma.

E o fanatismo, hoje tão invocado como uma das causas que alimentam as guerras por todo o planeta, o que é e como se fomenta? Por que de nada servem as lições do passado?

Será fanático o homem duma só ideia, que a persegue com toda a alma, que lhe dedica a própria vida? Então teríamos de considerar fanáticos grandes nomes da ciência e das artes que se esqueceram de ser "práticos" e realistas para se deixarem absorver por essa ideia.

A diferença entre esta paixão e a daquele que, "imbuído do olhar de Deus", combate até ao extermínio os que considera infiéis está no objecto dessa obsessão, e é claro que há muito de loucura em uns e outros.

Ora, sem as paixões não podemos viver. Elas fazem parte da nossa natureza. Mas já desde Descartes, pelo menos, sabemos que há um emprego útil da paixão e que não se trata de sufocá-las ou reprimi-las, mas de as "reencaminhar".

Infelizmente, as sociedades fechadas encontram-se envenenadas pelo próprio ar que respiram.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009


Stratford-upon-Avon (José Ames)

COMO SE NÃO


S. Paulo (El Greco)


"Neste momento, estou a trabalhar nas Cartas de Paulo. Paulo formula o problema: 'O que é a vida messiânica? O que vamos nós fazer agora que vivemos no tempo messiânico? O que vamos fazer em relação ao Estado?' O que é interessante para mim é o duplo movimento que encontramos em Paulo que foi sempre problemático. Paulo diz: 'Mantém-te na condição social, seja ela jurídica ou cultural, em que te encontras. És um escravo? Continua escravo. És um médico? Continua médico. És uma esposa ou um marido? Mantém-te na vocação para que foste chamado.' Mas ao mesmo tempo, ele diz: 'Não te preocupes, faz uso disso, aproveita isso.' Isto quer dizer que não é uma questão de mudar o estatuto jurídico de cada um, ou de mudar a sua vida, mas de o utilizar. E então especifica o que quer dizer através desta bela imagem: 'Como se não, ou como não', isto é: 'Estás a chorar? Como se não estivesses. Sentes-te exultante? Como se não te sentisses. Estás casado? Como se não estivesses (...)'"

Giorgio Agamben (entrevista à revista Vacarme)


Esta táctica do "como se não" é vista por Agamben de modo nenhum como interiorização ou alienação individualista. Ela está ligada, evidentemente, àquilo a que Paulo chama de tempo messiânico. É a comunidade que assim se fortalece, graças a uma permanente descodificação da realidade.

Ora, esse instrumento mental que ao mesmo tempo distancia e critica permite que, de certa maneira, o escravo não seja mais escravo, não só por não se confundir com o seu estatuto, mas porque o pensamento táctico o coloca num tempo de libertação.

É muito curioso verificar como isto se parece com a "dupla vida" dos revolucionários e dos comunistas ainda hoje. Por um lado, é a reinterpretação da actualidade económica e social, "como se" a História estivesse realmente na marcha anunciada e a teoria não fosse continuamente desmentida pelos factos e, por outro, é a embraiagem que isso permite num tempo caracteristicamente messiânico.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009


(José Ames)

GERAÇÕES SACRIFICADAS?


Immanuel Kant (1724/1804)


"Será sempre desconcertante... que as gerações anteriores pareçam ter-se sacrificado apenas para proveito das gerações futuras...e que só a última tenha a felicidade de morar no edifício [acabado]"

Immanuel Kant (citado por Hannah Arendt in "Entre o Passado e o Futuro")


Arendt explica esta ideia em termos de "fuga da política em direcção à história", como fuga para o "todo", "uma fuga instigada pela ausência de sentido do particular", no contexto duma crise geral da tradição. A Idade Moderna, ao transferir o seu interesse para a História, ao mesmo tempo abandonaria a antiga crença na "superioridade da acção sobre a contemplação."

A crença na História, na sua racionalidade imanente, faz-nos tornar ao fatalismo do que "está escrito". Os acontecimentos e as acções individuais só ganham sentido no Livro que se há-de imprimir, conforme o que já se encontra escrito nos rolos da Arca da Razão.

Parece, contudo, que mais recentemente o pensamento desconcertante do filósofo de Köenigsberg passou ele próprio à história.

As gerações futuras são demasiado abstractas para inspirar mais do que retóricas exortações à responsabilidade. Em qualquer caso, já ninguém transfere a felicidade para o futuro desconhecido. E é mais provável que as gerações anteriores prefiram empurrar os problemas para as que vêm depois, aliviando os pruridos de consciência com a crença no progresso científico.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009


Gouveia (José Ames)

O CÉU DOS TRUSTS


1928 - The Great Depression


"Este céu abstracto dos trusts, das máquinas e da racionalização, depressa fica carregado de nuvens, como um ar agitado e sobreaquecido; o raio cai; a multidão abriga-se; estranha limpeza destas ruas, envernizadas como o tampo dos móveis. Não é a primeira vez que os nossos Desejos Pensantes nos enganam; não é a última. E esta confusão das ideias, tão bem remunerada, tem grandes consequências. A guerra, nomeadamente, está-lhe associada; porque toda a gente compreende que a miragem da vitória é capaz de fazer aguentar um pouco mais a enlouquecida indústria; e, no fundo, desde que se espera escapar à severa lei das trocas, a conquista é o verdadeiro meio de enriquecer."

"Propos d'Économique" (Alain)


Tal como aconteceu no fim dos anos vinte do século passado, da América, onde ontem ainda íamos "aprender o segredo deste movimento acelerado de produção e de despesa, que dava prosperidade, concórdia e poderio", veio a tempestade e todos correm aos abrigos.

A confusão de ideias de que fala o filósofo é a mesma e alguns continuam a prosperar graças a ela. Mas todos acreditaram, dum modo ou de outro, no milagre da multiplicação dos pães.

Culpar o sistema económico é o mais fácil. Desobriga-nos de pensar no nosso papel de embarcadiços do Desejo Pensante. Porque se há predadores, nem todas as vítimas foram involuntárias. A ideia de sistema devia ser levada até ao fim para ser útil. Teríamos de encontrar, por exemplo, a razão estrutural da acção catastrófica de alguns dos protagonistas. Mas se queremos evitar o escolho do anti-humanismo, impõe-se relevar o papel das ideias e o facto de certas coisas só poderem acontecer em "águas turvas".

Porquê tanta credulidade? Esse é o ponto.

Talvez a mágica económica seja, para começar, apenas uma das consequências da demissão do pensamento politico.

domingo, 25 de janeiro de 2009


(José Ames)

O ELEVADOR


Nicolau II (1894 - 1917)

"(...) na corte dos Romanov, o grão-duque Nicolau disse ao imperador que preferia matar-se a tornar-se ditador militar. A Nicolau II restavam poucas escolhas. No dia 17 de Outubro, acedeu amargamente a reconhecer a primeira constituição russa de sempre, um parlamento eleito, a 'Duma Imperial' e uma imprensa livre. Nicolau cedo se arrependeu de tal generosidade: o seu Manifesto acelerou uma hemorragia de turbulência entusiástica e violência selvagem por todo o império."

"O jovem Estaline" (Simon Montefiore)


A reacção do grão-duque mostra quanto a chamada classe dominante estava atingida de morte. Eram muitos os nobres entre os revolucionários (Lenine era um deles), o que era de resto natural. Sendo eles os mais viajados podiam melhor perceber tal como um grande czar antes deles, o fosso que separava a Rússia das nações europeias.

Mas Pedro I tinha os meios para impor a modernização. Os bolcheviques conseguiram-na, mais pela força das circunstâncias, do que por mérito próprio.

A utopia fracassou, como não podia deixar de ser, mas a transformação da velha Rússia acabou por se realizar, com métodos mais violentos ainda do que os daquele czar.

Quem acreditar numa Providência na História poderá sempre pensar que o interregno dos bolcheviques foi a "máquina" que permitiu acelerar as mudanças necessárias. Com as vítimas do costume.

sábado, 24 de janeiro de 2009


Chichester (José Ames)

A CULPA


"The Trial" (1962-Orson Welles)


"'O Processo' não é só auto-reflexivo como é maturação de formas estéticas. Incarna as técnicas próprias do comentário exegético e da hermenêutica rabínica. É por si mesmo evidente que Kafka medita sobre a lei. O mistério original e as subsequentes aplicações da lei, da legalidade e do julgamento constituem a preocupação essencial da interrogação talmúdica. Se, no entendimento judaico, a linguagem adâmica era um discurso de amor, a gramática do homem caído é a do código legal."

"Paixão Infinita" (George Steiner)


K., a personagem de "O Processo" não é um homem culpado. É um cidadão que julga cumprir todas as suas obrigações perante a sociedade, assim como cumpre os seus deveres profissionais de bancário com seriedade e eficiência.

A sua culpa chega-lhe de fora, da sociedade, com a qual ele julga estar quite, e é-lhe imposta como uma herança. Ele interroga essa imposição como um enigma, quer racionalizá-la, mas não consegue mais do que se comportar, cada vez mais, como um culpado.

A técnica de Kafka revela-nos a essência da lei através duma situação-limite. Se os nossos actos são marcados pelas nossas origens e pela causalidade social, toda a culpa é kafkiana. E, como diz Steiner, se não vivemos já na condição adâmica, só nos podemos culpar a nós próprios.

A culpa é, pois, sempre maior do que o indivíduo e não pode ser evitada, porque viemos depois de Deus.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


(José Ames)

O ESPÍRITO DO TERROR


Louis-Antoine Léon de Saint-Just (1767/1794)


"Sempre gostara de consultar, desde a mais tenra idade, os oráculos da morte. Já falámos das bizarrias da sua mocidade, como, no meio duma cidade de província muito corrupta, de uma escola de direito dissoluta, no meio das seduções íntimas, no meio duma imaginação lúbrica, ele forjara um refúgio, um quarto forrado de negro e de brancas caveiras, que habitava sozinho, a certas horas, com os grandes mortos da Antiguidade. Foi, sem dúvida, ali que lhe apareceram as palavras que fizeram a sua vida: 'O mundo está vazio desde os romanos.'"

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Este é o retrato de Saint-Just, o Anjo da Morte, mais coerente na sua visão homicida do que o mestre incorruptível. Mas o verdadeiro incorruptível é este jovem de 26 anos que aparece tarde na Revolução para silogisticamente a precipitar no abismo.

O seu fanatismo, como vemos, é o fruto amadurecido duma ascese, duma separação violenta do mundo, como a dos futuros terroristas nas suas células, e duma transfiguração do passado que aqui faz literalmente jus à afirmação de Comte de que são os mortos que nos governam.

A grandeza de Roma é uma alucinação que estende, aos olhos do revolucionário, o deserto à sua volta. E a vida não tem qualquer valor quando se trata de estar à altura de mortos que nunca existiram.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

DE ALMOFADAS E ESTEIRAS


Felipe V de Borbón Rey de España


"Nos aposentos da rainha, as mulheres dos grandes têm uma almofada de veludo, e as suas noras uma de damasco ou de cetim, sem ouro nem prata. Elas sentam-se em cima. Todas as outras, qualquer que seja a sua distinção, ficam de pé ou simplesmente sentam-se no chão. Mas, em Espanha, não se vê em nenhum lado o soalho; todos estão cobertos de belas esteiras de junco que lhes são características. O fogo não lhes pega; são muito finas, frequentemente trabalhadas de paisagens a negro e amarelo e de outras coisas, expressamente preparadas para o local. Duram uma infinidade de anos, e há algumas caríssimas. Varrem-se, algumas vezes retiram-se para as sacudir; nada é mais limpo nem mais cómodo."

"Mémoires" (Duc de Saint-Simon)


Saint-Simon é um meticuloso analista dos costumes. Sabemos por ele, por exemplo, as fórmulas usadas numa cerimónia de "cobertura", quando é preciso repetir perante dezenas de cortesãos a mesma coisa - e não passa pela cabeça de ninguém o mau gosto de variar no mínimo que seja. Conhecemos o lugar de cada um, marcado como no teatro, e o que tem de fazer. O rei e a rainha limitam-se às vezes a responder com um aceno da cabeça às rituais curvaturas. Depois abandonam a sala quase sem proferir palavra.

Como no Japão tradicional, as damas sentam-se por terra e "levantam-se com uma flexibilidade, uma graça e uma prontidão, mesmo as mais velhas, e sem apoio nenhum, o que me surpreende sempre."

No teatro (na comédia, diz o duque) as señoras d'honor, as camareiras, não se sentam de outro modo, e não tendo o direito a sentar-se no tamborete, mesmo que algum se encontre vazio, apoiam nele somente as costas, de rabo no chão.

A nota sobre higiene das esteiras faz sorrir. É que o nosso mundo mudou de lentes e consegue "ver" os micróbios.


Peso de Paderne (José Ames)

MÚSICA


Pencil sketch of Rilke by Princess Marie Taxis
www.duinocastle.com/erinnerungen/index.asp

"(...) Hoje estou eu, estou eu sobre as torres da alegria, hoje, hoje não me importa que eu desapareça. Hoje grito eu um dos gritos. Hoje sou eu o candelabro de ouro da voz."

É alta e de crescença esbelta. Não há palmeira que ao alto mais pura se reparta. E sobe firme, como se sempre fosse. Só em baixo as bocas alternam."

"Estrofes para uma música festiva" (Rainer Maria Rilke-tradução de Paulo Quintela)



Há momentos assim. Mesmo com a cidade empapada na chuva que não se vê. Mas isso depende de quê?

Nenhuma boa surpresa é suficiente para a música que nos atravessa. "Pois não passa por mim o vibrar das estrelas?"

Aqui o uníssono já ultrapassou a embriaguez.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009


(José Ames)

O GÉNIO MALICIOSO


René Descartes (1596/1650)


"O verdadeiro escolho do regime (totalitário) não reside na necessidade espiritual que experimentam os homens de pensar duma maneira independente, mas na sua impotência física e nervosa em se manterem num estado durável de entusiasmo, senão durante alguns anos de juventude. É em função desta impotência física que o problema da liberdade se coloca, porque sob um tal regime uma pessoa sente-se livre na medida em que é entusiasta."

"Réflexions en vue d'un bilan" (Simone Weil)


Diz Simone que todos os regimes totalitários começam por um momento desses, em que o entusiasmo esconde o problema da liberdade, e que é por isso que um estrangeiro reconhece mais cedo do que os que o suportam o carácter tirânico dum regime.

É claro que o entusiasmo nos põe fora da política e no domínio da "possessão divina" (é isso, de resto, o que a palavra quer dizer). Mas entre esse estado e o dum homem com o juízo assente, solto pelo deus, capaz da distância do estrangeiro de que acima se fala, há mais do que um questão de resistência nervosa. Será o entusiasmo o modo de estar da juventude em relação à política (a religião ou o completo desinteresse)?

Os homens não se convertem facilmente e continuarão a interpretar o mundo conforme os seus preconceitos. O entusiasmo colectivo não é uma conversão, mas um contágio sujeito a uma espécie de regime das marés, a que nem os mais velhos escapam. É preciso procurar na mecânica a lei desse estado de espírito.

Por um tal começo, o pior dos regimes parece ganhar em legitimidade, quando, na verdade, haveria mais razão para lembrar o Malin Génie de Descartes.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009


Braga (José Ames)

O CORTE NA BRUMA



"O mesmo movimento que substitui ao pensamento do ser a onto-teo-logia chega, numa série de esquecimentos sucessivos, à ciência, a qual dedica a sua atenção apenas aos entes, que os subordina a si, que quer conquistá-los e deles dispor, que procura o poder sobre os entes. Este movimento chega assim à vontade de poder (que é uma certa compreensão do ser, a maneira como, na nossa época, o ser é ou faz o seu ofício de ser); chega à técnica. O fim da metafísica, a crise do mundo técnico, que chega à morte de Deus, é na realidade o prolongamento da onto-teo-logia."

"Dieu, la Mort et le Temps" (Émmanuel Lévinas)


Lévinas resume aqui um dos momentos do pensamento heideggeriano. O ser é o que permite o ente (o que existe). Quando deixamos de explicar as coisas umas pelas outras, alcançamos, segundo Heidegger, um novo patamar da compreensão. É a renúncia ao ser que Heidegger critica na ciência que se tornou um modo do domínio da natureza.

A diferença entre o ser e o ente foi esquecida e "este esquecimento constitui o pensamento ocidental" (ibidem). Apenas a linguagem guarda os vestígios do ser: "A linguagem é a casa do ser".

Para Heidegger, o ser não se pode confundir com o fundamento do ente, à maneira de Deus criador do Mundo, e o pensamento do ser não é uma ontologia, nem uma lógica.

Eis por que a revolução heideggeriana é, no fundo, contra a razão e permeável a uma poética da força.

A enorme influência deste filósofo, que teve em Nietzsche o seu profeta, tem tudo o a ver com o crepúsculo duma civilização, como o demonstram os acontecimentos que mais marcaram o século XX.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009


(José Ames)

O ESTRANHO CASO DE BENJAMIN BUTTON



Em "O estranho caso de Benjamin Button" (2008-David Fincher), inspirado num conto de Scott Fitzgerald, pode acontecer que os chamados efeitos especiais, que aqui marcam uma época, passem desapercebidos, tal é a sua perfeita integração no filme.

Se me dissessem que o velho Benjamin, mirrado como a nêspera do Mário-Henrique Leiria, era o produto do mais sofisticado dos make-up, não acreditava. Tinha de ser um outro actor com um outro corpo. E, de facto, a verdade é um pouco essa: não é o corpo de Brad Pitt, mas o dum outro e em vez da maquilhagem colaram-lhe o rosto digitalizado do actor do "Seven" que reflecte, maravilhosamente, a regressão da personagem da muleta para os cueiros.

Perante esta proeza, que abre incríveis possibilidades à edição cinematográfica e à quase desmaterialização dos actores, com uma, não sei se boa ou má, maior independência em relação a eles dos cineastas, por pouco me esqueço de que este é um filme impressionante sobre todos os outros aspectos. Mas pensemos só em como o fracasso da técnica tornaria pouco mais do que ridícula esta reflexão sobre o tempo e a precariedade do amor.

Benjamin Button nasce com o aspecto dum septuagenário paraplégico e morre como um rosado bebé. Em certa altura desta vida a correr ao contrário tem a mesma idade aparente de Daisy (Kate Blanchette). É o momento perfeito que ele quer recordar com ela diante dum espelho. Mas o tempo pressiona e esse amor está destinado a ser ultrapassado pelo tempo que foge para trás no caso de Benjamin.

Como aquele relógio na central dos comboios, o amor está contra o tempo. Esta fábula vem sugerir-nos que realmente não envelhecemos ao mesmo tempo, mesmo se é na mesma direcção. E o amor está sempre em risco na mudança de tudo em todos.

domingo, 18 de janeiro de 2009


Vila do Conde (José Ames)

UM DIA NA VIDA DE OBLOMOV


"Um dia na vida de Oblomov" (1979-Nikita Mikhalkov)




Não há nada de edificante neste quadro melancólico da vida de um preguiçoso, dotado do melhor coração do mundo. Mas das primeiras cenas, em que somos levados com demasiada facilidade ao desprezo dum modo quase vegetativo de viver, entramos na verdadeira intimidade deste personagem terno e inteligente que se transfigura ao contacto da amizade e do amor.


O amigo Soltz, em tudo tão oposto no temperamento e no carácter a Oblamov consegue despertar o eterno dorminhoco, mostrá-lo nos salões, levá-lo a passear e a viver. Oblamov, que não gosta de música, fica trespassado pela “casta diva” cantada por Olga, a brilhante descoberta do seu amigo. O romance que esta mulher sabe fazer viver por inspiração de Soltz nunca se saberia o que representava finalmente para ela, se não fosse a cena das lágrimas desastradamente presenciada. Oblamov compreende que o amigo arriscara o seu amor por amizade e que não tem o direito de se mostrar ferido por Olga contar com zelo de discípula ao alemão os progressos no amor do preguiçoso.


Entre os dois homens há uma corrente forte que os liga à infância comum e aos sentimentos populares. E aquele que triunfa na vida segundo a opinião, o que viaja e conquista os corações femininos não é o mais feliz dos dois. Há uma sabedoria acima do tempo – é delicioso o diálogo sobre a política que trava com o hóspede incondicional, espécie de testemunha amorosa do oculto na lentidão de Oblamov – nesta figura do romance de Goncharov. E o que mais impressiona é o quanto todos precisavam da sua presença e da sua simplicidade para encontrar um clima de felicidade.


O espectador caminha desta forma, do leito amarrotado e informe para o céu de Platão. A infância num país que vive ao ritmo das estações e conhece os prazeres do sono e do convívio moroso mas fiel, onde se vê o dono da casa beijar o servo que contou uma história. Nada se passa, mas tudo cresce e morre, tudo se renova sem vã agitação. A sesta feliz de amos e criados é todo um olhar sobre a política e a paixão do dinheiro e do poder.


Oblamov não casa com Olga, mas foi o único que soube viver o verdadeiro amor e despertá-lo num coração cheio de literatura. A atmosfera tchecoviana não é dos menores encantos deste filme.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009


(José Ames)

ESTETAS DO VAZIO



"Segundo Broch, o verdadeiro poder de sedução, a força sedutora da figura do Demónio é antes de mais um fenómeno estético. Estético no sentido mais amplo do termo; os homens de negócios cujo credo é "Negócios são negócios" e os estadistas que proclamam "A guerra é a guerra" são literatos estetizantes no "vazio de valores". São estetas na medida em que a harmonia do seu próprio sistema os encanta, e tornam-se assassinos porque estão dispostos a sacrificar tudo a essa harmonia, a essa "bela" coerência."

"Homens em tempos sombrios" (Hannah Arendt)


É pelo alto que o homem se perde ou se salva. Não se espere do homem terroso, com os pés bem plantados ou do "casado, fútil, quotidiano e tributável" qualquer arremedo de voo lucífero.

Não, é o melhor do homem que escolhe a perdição. Talvez seja esse o sentido da figura do anjo. De súbito, das hierarquias aladas cai o que estava mais próximo de Deus.

Encontramos facilmente esse homem numa discussão sobre a justiça. Ele quere-la geométrica e universal, sem resto, sem sombra de pecado. É um esteta que não podendo já recorrer ao mundo platónico dos valores pretende "a sacrificar a vida humana ao mundo, ou seja, a algo terreno que de qualquer forma está destinado a morrer. " (ibidem)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009


Serra da Estrela (José Ames)

O PODER E A FORÇA DAS COISAS



"Tal foi o estranho despertar da Revolução, quando muito preocupada com ideias, princípios, disputas e facções, ela viu que por baixo se pensava noutra coisa, que se tratava de interesses, de agiotagem, de coalizão, que todos estavam feitos com todos."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Em nome da salvação da Pátria, especulava-se e faziam-se grandes fortunas. O "monstro", como lhe chama Michelet, estava nas próprias sociedades populares e nos comités revolucionários.

Em "L'Otage" de Paul Claudel, vemos o homem que saiu da Revolução, na personagem do Barão Turelure, cínico, manobrando habilmente na política, mas, sobretudo, realista, nos dois sentidos da palavra. É pela mão de homens como esse que é restaurada a monarquia.

Por que é que os homens se transformam assim, quando queriam "apenas" transformar o mundo?

Não creio que chegue dizer que o poder corrompe, a não ser que o poder se identificasse com a força, o que não é verdadeiro.

Na Necessidade, como a entendiam os Gregos, há força, mas não há poder. A política faz-se com o que a Necessidade deixa. E o resultado da acção de milhares ou milhões de indivíduos não é da ordem do poder, mas da força, força que se impõe, a eles que a desencadearam, sem saberem ao que iam, como a força das coisas, como uma segunda Natureza.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009


(José Ames)

DEBBOLEZZA


Maurice Maeterlinck (1862/1949)


"Eu escutava a sua conversação como uma canção popular deliciosamente francesa, compreendia tê-la ouvido troçar de Maeterlinck (que ela aliás admirava agora por fraqueza do espírito feminino, sensível a essas modas literárias cujos raios vêm tardiamente) (...)"

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Como entenderia o pensamento politicamente correcto esta passagem?

Logo a seguir, Proust parece desdizer-se, pois enumera uma série de escritores que zombaram da obra de grandes autores seus contemporâneos. Stendhal, por exemplo, ressabiado por um elogio demasiado contido de Balzac ao seu "Cartuxa de Parma", responde-lhe que abominava o estilo rebuscado e que, ao escrever o seu romance, e "para apanhar o tom, lia todas as manhãs 2 ou 3 páginas do Código civil".

Incompreensões e ciumeira literária são de todos os tempos. Será por aí que veremos a pertinência da observação proustiana sobre o espírito feminino?

"La donna è mobile"? e, sendo o "sexo afectivo", tem dificuldade em ser "fria e objectiva" quando critica?

Se assim for, entre os literatos, uns com os outros, parece prevalecer o espírito feminino.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009


Arouca (José Ames)

AUTORIDADE



"Uma vez que a autoridade exige sempre obediência, é muitas vezes confundida com alguma forma de poder ou violência. Mas o facto é que a autoridade exclui o uso de meios exteriores de coacção; quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou. Por outro lado, a autoridade é incompatível com a persuasão, já que esta pressupõe uma paridade e funciona através de um processo de argumentação."

"Entre o Passado e o Futuro" (Hannah Arendt)


Arendt diz também que a autoridade é sempre hierárquica. Na origem deste conceito, encontramos o sagrado e a superioridade absoluta. A obediência, nestas condições, é natural e dispensa tanto a coacção quanto os argumentos.

A hierarquia funcional das nossas organizações poderia ser igualmente incontroversa se fosse possível o interesse exclusivo da organização.

A autoridade nos nossos dias em que hierarquia se poderia fundar? Tirando o caso da ciência, cada vez mais esotérica e especializada, parece que o mundo moderno não é propício à autoridade, tal como Hannah Arendt a entende.

Nenhuma classe profissional, nenhuma função política está em condições de a criar. A autoridade tornou-se quase apenas um carisma pessoal.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009


(José Ames)

ATRAVÉS DO ESPELHO



"As grandes, as implacáveis paixões amorosas estão todas ligadas ao facto de um ser imaginar que vê o seu eu mais secreto espiar por detrás dos olhos de um outro."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)


Não é por isso que um ser desconhecido, que se vê pela primeira vez, tem o poder de nos pôr fora dos gonzos?

O que não se conhece representa melhor esse eu secreto porque é pura forma, é como um nome que designa o que é ainda mistério para nós mesmos.

À medida que das relações emerge uma personalidade, uma história pessoal, essa apropriação do outro pela nossa imaginação cede ao sentimento ou ao desinteresse.

Nos casos em que a paixão sobrevive ao conhecimento, temos que admitir que o narcisismo é demasiado forte para triunfar sobre a realidade.

Mas o espelho não é aqui o símbolo adequado, porque se trata de proteger o que não se vê, o que é promessa infinita. É esse o sentido do segredo, o segredo para nós, em primeiro lugar.

domingo, 11 de janeiro de 2009


Porto Brandão (José Ames)

ACÇÃO E OPINIÃO


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"A verdadeira superioridade de Hitler assentava no facto de ter uma opinião em qualquer circunstância e de essa opinião se adaptar estritamente à sua visão do mundo. Em tais condições (mas apenas em tais condições), a superioridade cresce efectivamente ao mesmo tempo que o fanatismo: os erros mais evidentes e verificáveis deixam de a poder abalar."

"Compreensão e Política e Outros Ensaios" (Hannah Arendt)


O homem que tem uma opinião sobre tudo está sempre em condições de julgar. "Ora, na ordem política, em que é preciso agir constantemente e por isso constantemente julgar, é exacto que, na prática, é mais vantajoso emitir um juízo, seja ele qual for, e agir, seja de que maneira for, que não julgar e não agir de todo."

Ao contrário do homem que sabe que não sabe, o homem com opinião "em qualquer circunstância" está sempre, para o bem e para o mal, em condições de agir.

É fácil de ver quanto essa opinião, num mundo complexo de mais para termos essas certezas, depende dum espírito exclusivo que se proteja da crítica e do confronto com outras ideias e teorias que possam instalar a dúvida.

Sendo esse o método de todo o proselitismo religioso ou político, não podemos admirar-nos que tenha sido adoptado, em maior ou menor grau, pelos partidos políticos, verificando-se que, quanto mais "fechados", mais opiniosos e mais prontos para a acção.

Claro que isto levanta a questão de saber se a acção "livre" é possível, ou se depende duma boa dose de inconsciência e de necessidade.

sábado, 10 de janeiro de 2009


(José Ames)

MOMENTOS CRÍTICOS



"Germania" de Publius Cornelius Tacitus


"Tácito, nalgumas páginas imortais que descrevem uma sedição militar, soube perfeitamente analisar a coisa. 'O principal sinal dum movimento profundo, impossível de acalmar, é que eles não estavam disseminados nem eram manobrados por alguns, mas juntos se inflamavam, juntos se calavam, com uma tal unanimidade e uma tal firmeza que se teria acreditado que agissem sob comando.'"

"Méditations sur l'obéissance et la liberté" (Simone Weil)


Esses momentos, como diz Simone, não podem durar, porque essa unanimidade tem sempre por efeito "suspender toda a acção e deter o curso quotidiano da vida" e depois da "emoção viva e geral" é preciso voltar às tarefas diárias.

Na mitologia da Revolução entra a ideia ingénua de um prolongamento de tais momentos, em que o poder é isolado e o "povo" impõe a sua justiça, nada voltando a ser como dantes. De facto, esses são momentos de crise, em que a ordem "muda de pé" sem que nada de essencial se altere.

De resto, nem todos os movimentos espontâneos deste tipo são contra a opressão e podem directa ou indirectamente provocar a injustiça como se viu tantas vezes ao longo da história.

Simone conclui que a ordem social "embora necessária, é, de qualquer maneira, essencialmente má." E, segundo ela, não se pode censurar os que tentam miná-la quando os oprime, nem os que a defendem podem ser vistos "como formando uma conjura contra o bem geral."

A separação que Platão fazia entre o Bem e a Necessidade continua a ser pertinente. Tudo o que cai sobre a lei da necessidade não é justo nem injusto. Alguma ordem há-de haver e por isso muitos dos amantes da liberdade acabarão trucidados.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009


Lamas de Mouro (José Ames)

TENTATIVAS DE SOBREVOO



"A linguagem da pintura não é 'investida do estatuto de natureza': tem de ser feita e refeita. A perspectiva da Renascença não é um 'artifício' infalível: não passa de um caso particular, uma data, um momento de uma informação poética do mundo que continua depois dela."

"O Olho e o Espírito" (Merleau-Ponty)


"Algo no espaço escapa às nossas tentativas de sobrevoo." (ibidem)

O mundo não pode ser projectado em nenhum plano, é sempre o nosso ponto de vista. Daí que a pintura tenha de explorar um novo realismo sempre que a técnica se aproxima da visão.

Mas quando a fotografia, por exemplo, se torna numa cópia da visão, o real é tudo o que desfaz o ponto de vista.

Já não interessa pintar o que se vê, mas ver o que se pinta, o artifício necessário que é a nossa resposta à fuga do mundo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009


(José Ames)

DE CÍNICOS E ECONOMISTAS


Oscar Wilde


Oscar Wilde definia nestes termos um cínico: um homem que sabe o preço de tudo e o valor de nada. Daí, outros acharam que essa definição se podia aplicar também aos economistas.

Tim Harford ("The Undercover Economist"), de quem colhi a citação, explica porque falhou, no caso das licenças de espectro de rádio para os telemóveis, nos Estados Unidos, nos anos 90, a teoria dos jogos tentada pelo governo americano para obter o melhor preço. As companhias de telecomunicações simplesmente encontraram um meio de comunicar umas às outras as suas intenções e de estabelecer compensações mútuas ("este esquema nem sequer exigia um acordo - ilegal - porque o leilão permitia sinais tão claros como estes".)

Parece que o governo se enganou no jogo em que apostou, pois havia um outro jogo dentro do jogo. Se se pudesse prever isso, poderia ter sido útil a teoria de Von Neumann e John Nash.

No fundo, trata-se duma situação típica. As nossas previsões não podem ter em conta todos os factos relevantes, em primeiro lugar, porque eles são desconhecidos. Podemos apenas projectar o que já sabemos.

E é aqui que um economista se pode parecer com um cínico, pois a sua ciência, não podendo descrever a realidade, não deixa de presumir a capacidade de a antecipar, mesmo quando a descrição é acompanhada de uma prudente condicional. Tal como o cínico que não acredita em nada, a não ser nessa sua negação, o economista só acredita naquilo que a realidade constantemente desmente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009


Oxford (José Ames)

O ACTOR PARADOXAL


O massacre de São Bartolomeu (1572)


"Na época das guerras civis político-religiosas dos séculos XVI e XVII, as motivações políticas e religiosas, mesmo se elas se deixam sem dúvida distinguir a posteriori, estão ainda inextricavelmente misturadas: no seu próprio campo, a religião é percebida como a finalidade, enquanto que o campo inimigo apenas vê nisso um pretexto, e inversamente."

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)


Por muito relacionadas que estejam as coisas em política, não podemos prescindir dum modelo espacial com um dentro e um fora, o interior e o exterior subdividindo-se à medida que os vários sistemas se diferenciam.

Assim se pode compreender como "os fins e os pretextos" se trocam quando saltamos de um campo para outro.

O lugar do indivíduo que observa, de fora, os dois campos inimigos será então tão utópico como o lugar do jornalismo "objectivo", ou está aí a raiz do elemento crítico que, na altura própria, forçará a mudança de paradigma? Temos de acreditar nisso, se quisermos explicar, por exemplo, o progresso científico.

Mas, graças à ubiquidade dos meios de comunicação modernos, quantos "observadores" abdicam da sua posição crítica para jogarem o papel de actores virtuais, pensando como se estivessem dentro de um dos campos, como se pudessem ter nele qualquer acção!

terça-feira, 6 de janeiro de 2009


(José Ames)

A CURA DE TORMES


(detalhe dos frescos da Capela Sistina)


"(...) sentado em vetustíssimos fólios, com os flocos das infinitas barbas por sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catálogos, o Altíssimo lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a mão super-forte que o Mundo criara, e o Criador lia e sorria."

"A Cidade e as Serras" (Eça de Queirós)


O serrano imagina um mundo convertido aos livros, feito de páginas impressas embrulhando a natureza, e que, no seu assalto à Criação, o livro atingira o próprio Criador que lê, sorrindo, o filósofo que mais fez pela separação entre Ele e a Igreja.

A crítica de Zé Fernandes ao estado do mundo assume a forma duma mania, em que os males da Civilização se incorporam no conhecimento, que não podemos limitar chamando-lhe livresco, visto que, aos olhos da personagem, todo o conhecimento é culpado dum desvio da natureza e da simplicidade.

Assim, Jacinto regressa ao seu país natal, pela mão do ingénuo companheiro, transformado num discípulo de Rousseau e da tese do "bom selvagem".

E se o Deus de Zé Fernandes acha graça a Voltaire é porque também Ele precisa da cura de Tormes.