terça-feira, 31 de março de 2009


Alcochete (José Ames)

MELHOR DO QUE A PROVOCAÇÃO


O incêndio do Reichstag


"Quando Rudolf Diels, mais tarde chefe da Gestapo prussiana, tentou falar a Hitler sobre o interrogatório de van der Lubbe, encontrou o chanceler do Reich próximo da histeria. Diels tentava dizer que o fogo tinha sido obra dum "louco" (einen Verrückten). Mas Hitler bruscamente interrompeu-o, gritando que aquilo tinha sido desde há muito planeado. Os deputados comunistas deviam ser enforcados nessa própria noite, rugiu. Nem havia que mostrar qualquer piedade com os social-democratas ou a Reichsbanner (uma espécie de guarda-republicana)."

"Hubris" (Ian Kershaw)


Van der Lubbe foi o jovem holandês que pegou fogo ao Reichstag, em 27 de Fevereiro de 1933. Uma das lendas mais tenazes é a de que foram os próprios nazis a provocar o incêndio, por ser uma ideia tão condizente com os seus métodos. Mas quanto mais eficaz não é a mentira em que há uma ponta de verdade (o incendiário era comunista) do que a completa ficção! O acto tresloucado de van der Lubbe caiu como uma dádiva dos céus nas mãos de Hitler.

Compreende-se que tenha ficado furioso com alguém que lhe queria mostrar os factos, quando ele já tinha a peça completa dentro da cabeça.

segunda-feira, 30 de março de 2009


(José Ames)

IMPESSOAL E TRANSMISSÍVEL?




"Isto é, no fundo, o que me agrada em Simondon (Gilbert Simondon 1924/1989); ele pensa sempre a individuação como a coexistência dum princípio individual, pessoal e um princípio impessoal, não-individual. Por outras palavras, uma vida é sempre feita de duas fases ao mesmo tempo pessoal e impessoal. Estão sempre em relação, mesmo se se encontram claramente separadas. A ordem do poder impessoal com que toda a vida se relaciona podia chamar-se impessoal, enquanto que a dessubjectivação seria essa experiência diária de nos confrontarmos com um poder impessoal, qualquer coisa que nos ultrapassa e ao mesmo tempo nos dá a vida."

"Giorgio Agamben em entrevista à Vacarme"


Se nos quisermos referir à ideia de Deus, então ele está do lado do impessoal e não do da pessoa. O "que nos ultrapassa e ao mesmo tempo nos dá a vida", seja isso o que for, não pertence ao mundo do sujeito. E devemos incluir na ideia egocêntrica todas as reduções e simplificações da realidade.

Quando a subjectividade é o nosso único modo de ser, precisamos de todos os "privilégios" da consciência, para continuar, mesmo depois de Deus, no centro do universo.

A transcendência dos sistemas em relação ao indivíduo é ainda uma perspectiva demasiado humana, o inter-subjectivo (a comunicação de Luhmann) servindo de relais à consciência individual.

Pessoal e impessoal estão de facto indissoluvelmente ligados, mas não está ao nosso alcance a perfeição do impessoal, que seria algo de muito parecido com o que Simone Weil comparava à "obediência" da matéria.

domingo, 29 de março de 2009


Alcochete (José Ames)

IRRELEVANTEMENTE PRECISO



Nas nove alíneas da sua alegada maneira de "não ver a filosofia", Popper diz uma coisa muito interessante: "não vejo na filosofia um empenhamento no sentido de uma maior precisão ou exactidão de expressão. A precisão e a exactidão não são por si só valores intelectuais, e não devemos nunca procurar ser mais precisos e exactos do que o problema em causa requer."

"Em Busca de um Mundo Melhor" (Karl Popper)


Isto tem uma imediata aplicação na espécie de terrorismo usado por alguns especialistas quando um "leigo" pretende pronunciar-se sobre o seu domínio. O facto de disporem de dados mais exactos não torna mais pertinente a sua opinião, se a questão ficar resolvida com os dados ao alcance de qualquer um. Para decidir, por exemplo, se devemos investir metade do orçamento na corrida espacial, não nos ajuda em nada o levantamento minucioso do terreno no planeta X.

sábado, 28 de março de 2009


(José Ames)

PRECONCEITOS FILOSÓFICOS


engraving by W. Ridgway after Daniel Huntington's
1868 painting Philosophy and Christian Art


"Todos os homens são filósofos. Mesmo quando não têm consciência de terem problemas filosóficos, têm, em todo o caso, preconceitos filosóficos. A maior parte destes preconceitos são as teorias que aceitam como evidentes: receberam-nas do seu meio intelectual ou por via da tradição."

"Em Busca de um Mundo Melhor" (Karl Popper)


O mais curioso é que quando alguém exprime uma ideia inesperada muitas vezes é criticado por estar a "filosofar". A ditadura da opinião geral e do chamado senso-comum tem ouvidos sensíveis a qualquer dissonância que ponha em causa as "verdades estabelecidas".

Apelidar esta atitude de preguiça intelectual é, contudo, injusto. Porque a sociedade precisa de crenças estáveis e a massa dessa opinião inerte é necessária ao seu equilíbrio.

Podemos ter uma ideia dos perigos que espreitam uma mudança radical nesse fundo de preconceitos filosóficos no exemplo dos grandes demagogos em tempo de crise.

sexta-feira, 27 de março de 2009


Salgueiros (José Ames)

A PALAVRA QUE MUDA


O 9 Thermidor


"O discurso escrito por ele, e certamente concertado com Robespierre, era de uma infinita perícia. Se tivesse conseguido levar a leitura pelo menos até à vigésima linha, a curiosidade, habilmente espicaçada, teria levado a desejar ouvi-lo, e a Convenção, mais branda, voltava ao jugo."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Mas em 9 Thermidor, o discurso de Saint-Just foi interrompido por Tallien, um dos que, temendo fazer parte da próxima carroça para a guilhotina, se coligara com outros para perder o Incorruptível. Sempre que este tentava responder, as suas palavras eram abafadas por gritos de "Abaixo o tirano!". "Só a morte sem frases (a expressão que se atribui a Sièyes) podia reunir uma massa tão heterogénea, tão interessada em esconder os móbiles que a empurravam contra ele." (ibidem)

Não havia homem mais íntegro do que o antigo advogado de Arras. Nem julgava mal a sua situação, no fio da navalha, manobrando com arte consumada entre os perigos, empurrado quase sempre para o extremismo para escapar ao labéu da indulgência. A violência era para ele tão necessária como a velocidade para o equilíbrio do ciclista (de resto, já se comparou a Revolução a uma bicicleta).

Mas, enfim, a direita que o tinha apoiado até ali (ele parecia querer restaurar o poder dos padres e assegurar a "ordem"), aviltada por uma "longa hipocrisia", viu na ocasião uma oportunidade para matar a Montanha com o seu próprio veneno e trazer de volta a realeza, e abandonou Robespierre aos thermidorianos.

A arte da oratória revela aqui o seu grande poder. Os coligados tiveram medo do efeito das palavras de Saint-Just, o qual, ao fim de contas, ia pedir o que todos pediam: "a atenuação das arbitrariedades dos comités".

Parece que um discurso pode mudar o curso da história, mas a verdade é que isso só é possível quando a política se tornou o modo exclusivo de ser da sociedade.

quinta-feira, 26 de março de 2009


(José Ames)

O ÓSCAR DA MÁ CONSCIÊNCIA


(2008-Danny Boyle)


Ao ver o filme que arrebatou os óscares deste ano, não posso deixar de pensar que o júri se rendeu ao politicamente correcto. Este melodrama contado no estilo vertiginoso dum vídeo-clip não suporta, quanto a mim, a comparação, por exemplo , com "Changeling" ou "Benjamin Button" que também estavam em competição.

A ideia de "justificar" as respostas certas no concurso da televisão com as peripécias da vida atribulada de Jamal Malik é pouco menos do que absurda e transforma e demagogia do medium num fato à medida daquele slumdog em particular.

A câmara demente dá-nos uma Índia que se nada tem a ver com o romantismo da literatura colonial, parece ser mais representativa dum subproduto local do cinema de massas.

quarta-feira, 25 de março de 2009


Bristol (José Ames)

O MUNDO REAL


Protágoras (480 a.C. /410 a.C.)


"(...) no domínio dos números inteiros um e um podem permanecer lado a lado durante a perpetuidade dos tempos, nunca serão dois se alguma vez uma inteligência não operar o acto de os somar. Só a inteligência activa tem a virtude de operar as conexões, e desde que a atenção se distenda as conexões dissolvem-se. Sem dúvida existem em nós numerosas conexões ligadas à memória, à sensibilidade, à imaginação, ao hábito, à crença, mas não encerram a necessidade. As conexões necessárias, que constituem a própria realidade do mundo, só têm elas mesmas realidade como objecto da atenção intelectual em acto."

"Commentaires de textes pythagoriciens" (Simone Weil)


Nem a soma, nem as unidades se sustentam sem a inteligência. E as conexões necessárias que se "dissolvem" quando deixamos de pensar nelas pertencem à matemática e não ao mundo "físico".

Mas nem por isso deixaríamos de nos ferir de encontro a um obstáculo por não pensarmos nele. A realidade do mundo, no entanto, não se deveria confundir com a necessidade que se pode experimentar no corpo sujeito às forças do universo.

Fará sentido falar num mundo real senão contra a ideia de um sujeito que perdeu o contacto com o mundo dos outros?

A expressão pitagórica "tudo é número" vale essa outra que diz que o homem é a medida de todas as coisas (Protágoras).

terça-feira, 24 de março de 2009


(José Ames)

AS BAGATELAS DE LOUIS


Le Grand Trianon (peristilo)


"Embora o lugar onde ele se despia estivesse muito iluminado, o capelão de dia, que tinha durante a sua oração da noite um castiçal aceso, entregava-o depois ao primeiro criado de quarto que o levava à frente do Rei quando se encaminhava para a sua poltrona. Ele lançava um olhar em redor e nomeava em voz alta um dos que ali estavam, a quem o primeiro criado de quarto cedia o castiçal. Era uma distinção e um favor que tinha o seu valor, tanto o Rei possuía a arte de dar existência a nadas."

"Mémoires" (Duque de Saint-Simon)


O tom desta "bagatela" que serve para caracterizar o rei é inequivocamente crítico.

Luís XIV ficou zangado com o duque desde a carta de demissão deste, alegando a pouca saúde, mas na verdade por ter sido preterido numa promoção.

O monarca sentia-se suficientemente picado para não dar a entender o seu desagrado. De modo que, para grande surpresa do próprio, o chamou várias vezes para pegar no castiçal na cerimónia de se deitar. E, para marcar que só o marido incorria nesse desagrado, chegou a convidar a duquesa (sem o duque) para as ceias no Trianon.

Estes "nadas" concedidos pelo Rei são hoje quase incompreensíveis por não terem expressão monetária. Mas devemos ter em mente que a corte de Versalhes imitava o sistema solar na gravitação dos cortesãos à volta do soberano, mas que dele se distinguia por aí ter curso uma hierarquia fundada na proximidade e no reconhecimento.

segunda-feira, 23 de março de 2009


Amarante (José Ames)

CONHECIMENTO SEM CONSCIÊNCIA


Salão de leitura da Biblioteca do Congresso (EUA)


"Isto conduz-me à diferença mais importante entre a minha abordagem e a de Colingwood. Para este, como para quase todos os filósofos, o conhecimento consiste essencialmente nas experiências vividas do sujeito conhecedor. E tal, como é óbvio, verifica-se com o conhecimento histórico. Para mim, o conhecimento consiste sobretudo nos artefactos exossomáticos, ou produtos, ou instituições. (É o seu carácter exossomático que os torna racionalmente criticáveis). Existe conhecimento sem um sujeito cognoscente - o conhecimento, por exemplo, que se encontra armazenado nas nossas bibliotecas. Pode assim haver aumento do conhecimento sem qualquer crescimento da consciência do conhecedor."

"Uma abordagem pluralista à filosofia da História" (Karl Popper)


É verdade que sem os monumentos teríamos sempre de recomeçar de novo e que sem os artefactos a que se refere Popper a crítica não teria sequer objecto. Mas imagino o que seria uma cidade cheia de vestígios do passado e com toda a memória da ciência e das artes tecnicamente disponível e sem um espírito para fazer disso uma opção de vida.

O conhecimento objectivo, é certo, cresce independentemente da nossa capacidade individual de o dominar e da possibilidade até de se tornar consciência. Dum modo apenas figurado, parece estar acessível à espécie e não já ao indivíduo.

É, aliás, essa separação que nos permite, cada vez mais, ter já pontos de vista fora da humanidade e especular sobre o universo que nunca poderá ser objecto de experiência.

É claro também que esta situação agrava os perigos da especialização e do "espírito de superioridade" (acima de qualquer crítica vinda dum "leigo").

O humanismo pode não ser apenas uma ilusão do passado, quando a medida deixa de ser determinada pelo que convém ao homem. De qualquer modo, parece ser um princípio de sanidade intelectual diferenciar a máquina, por mais próxima que esteja do clone humano, dum valor que não pode ser técnico.

domingo, 22 de março de 2009


(José Ames)

SILLY COMPETITION


John Maynard Keynes (1883/1946)
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"O mais famoso economista do século vinte, John Maynard Keynes, comparou o mercado de acções a uma tonta competição jornalística em que os leitores fossem a convidados e escolher rostos bonitos dentre centenas de fotografias. O vencedor é um leitor que escolha as raparigas mais de acordo com a opinião geral."

"The Undercover Economist" (Tim Harford)


"Não é o caso de escolher aquelas que, segundo o melhor juízo de cada um, são realmente as mais bonitas, nem mesmo aquelas que a opinião média genuinamente pensa serem as mais bonitas. Chegamos ao terceiro grau no qual devotamos as nossas inteligências a antecipar aquilo que a opinião média espera que seja a opinião média. E alguns, creio que praticam o quarto, o quinto e graus ainda mais altos."

(John Maynard Keynes)


É isto racional? É se o que interessa é ganhar o concurso e não escolher o melhor pedacinho de cara.

Mas este paradoxo pode levar-nos muito longe. O mercado de valores não é, pois, um espelho da economia real (de que maneira pode andar longe dela, aprendemo-lo com as crises).

O "concurso" estava a premiar os que elegiam as mais feias, praticando não sei que grau de especulação sobre a "opinião média". Podiam continuar a fazê-lo, já que ninguém se guiava pelo juízo próprio, mas por uma estupidez suposta.

Não sei se chega chamar a isto ganância.

sábado, 21 de março de 2009


Vila da Feira (José Ames)

CASOTAS



"Dê uma olhada neste Nicholson. O equilíbrio é excepcional. Quadrados de cores diferentes. E, no entanto, convivem na mais perfeita harmonia. Sem qualquer atrito. O homem tem um olho maravilhoso. Basta mudar uma das cores, até mesmo o tamanho de um quadrado, para que o equilíbrio desapareça. Percival apontou para um quadrado amarelo e acrescentou: Aqui está a sua Secção 6. É o seu quadrado, daqui para diante. Não precisa de se preocupar com o vermelho nem com o azul."

"(...) Uma acção nada tem a ver com as suas consequências. É isso que está a dizer?

- As consequências são decididas noutra parte, Daintry."

"The Human Factor" (Graham Greene)


É a teoria das casotas. Cada um na sua casota não tem de se preocupar com o que se passa nas outras. E, como vimos, até as consequências podem ser separadas dos actos iniciados numa casota e endossadas a outra, como no "outsourcing". É a perfeita desculpabilização. A organização é o único princípio soberano.

No romance de Graham Greene trata-se dos Serviços Secretos ingleses, mas podia ser qualquer outra organização que assumisse a responsabilidade pelo indivíduo mediante a perfeita fidelidade e obediência ao "nós" do colectivo. Nos partidos em geral e no chamado "centralismo democrático" em particular existe a mesma transferência de responsabilidade.

O doutor Emmanuel Percival é o encarregado das autópsias, quando não a causa de ter de haver algo parecido com uma autópsia, como acontece com o infeliz Davis.

Daintry, o inspector, não é grande apreciador da arte abstracta. Nem consegue ver a relação entre uma harmonia de quadrados coloridos e homens de carne e osso como Castle ou Davis.

sexta-feira, 20 de março de 2009


(José Ames)

UM PESO-PESADO NO SALÃO


Anthony Hopkins como Pierre Bezukhov


"A influência em sociedade, contudo, é um capital que tem de ser economizado se deve durar. O príncipe Vassili sabia disto, e desde que percebera que se intercedesse a favor de toda a gente que lhe pedisse, em breve não estaria em condições de pedir para si mesmo, tornou-se cauteloso no uso da sua influência."

"Guerra e Paz" (Leão Tolstoi)


Tocamos aqui nos limites da amabilidade deste cortesão sem mácula, mas calculando as consequências das suas palavras, tanto quanto a inclinação das vénias ou as voltas do minuete.

Por isso, a perfeita sociedade (a mais "educada") é também a mais aborrecida, onde ter opiniões fortes ou simplesmente "coloridas" destoa e pode ofender os sonâmbulos.

Tolstoi dá-nos com Pierre Bezukhov o contrário deste espírito escravo das maneiras. É ele que agita o salão de Anna Pavlovna, derrubando as convenções tal simpático paquiderme. Como perfeita anfitriã, Anna tenta debalde fazer de cornaca.

quinta-feira, 19 de março de 2009


Lisboa (José Ames)

A MÚTUA IGNORÂNCIA


George Akerlof


"Deveríamos esperar que um sistema de seguros privados fosse uma manta de retalhos. Algumas pessoas com despesas mais prementes do que o seguro de saúde (por exemplo, os jovens pobres, que têm pouco dinheiro e justamente conjecturam que não será provável que fiquem seriamente doentes) cairão fora do sistema. Como resultado, as companhias de seguros de saúde, precisando de cobrir os custos, aumentarão mais os prémios para o cliente médio, empurrando mais gente para fora. Contrariamente ao modelo dos "limões" (George Akerlof), o mercado não entra em colapso completamente; isto deve-se em parte a muitas pessoas acharem que os riscos de terem de pagar por tratamento médico são tão preocupantes que estão dispostas a pagar substancialmente mais do que um prémio actuarialmente justo."

"The Undercover Economist" (Tim Harford)


Eis por que os E.U.A. gastam mais com a saúde de que qualquer outro país desenvolvido e com piores resultados. O autor apresenta este caso como um exemplo de "inside information", uma das causas por que os mercados não funcionam. Não é possível, aqui, aplicar-se o sistema de seguros porque a parte que mais poderia contribuir para o seu financiamento se auto-exclui por pensar que corre menos riscos de adoecer.

Com o desenvolvimento da informação, da integração e do cruzamento de dados, parece que a tendência será a deste tipo de seguros ser cada mais exclusivo e de ter cada vez menos a ver com o conceito de seguro. Como diz Tim Harford, "o seguro depende da mútua ignorância", logo, "qualquer avanço na ciência médica que faça recuar as fronteiras da ignorância, tanto para os seguradores como para os segurados ou ambos, enfraquecerá a base do seguro. Quanto mais sabemos, menos podemos segurar."

Por pouco teríamos de conotar este negócio com a magia e o obscurantismo... Mas a verdade é que o risco está sempre presente nas nossas vidas e que a sorte continua a decidir grande parte do nosso destino. Se não fosse essa grande incerteza não haveria seguros na terra nem no céu.

quarta-feira, 18 de março de 2009


(José Ames)

OS AGAPANTOS



"'(...) quanto a flores, ele não tinha visto ainda nenhumas, não era capaz de distinguir entre a malva e a malva-rosa. Fui eu que lhe ensinei - Você não vai acreditar - a reconhecer o jasmim.' E tinha de admitir que era um pensamento curioso que o artista citado por todos os conhecedores como o pintor de flores mais conceituado dos nossos dias, superior até a Fantin-Latour, nunca teria talvez, sem a ajuda da mulher que se encontrava sentada ao meu lado, sabido pintar um jasmim."

"Le Temps Retrouvé" (Marcel Proust)


Ou melhor dito, não saberia talvez que estivesse a pintar um jasmim. Porque nunca perguntei a um jardineiro, só muito tarde soube como se chamava uma das flores mais comuns nos nossos jardins: o agapanto. Se fosse pintor, o desconhecimento do nome não me teria impedido de pintar esses caules de girafa. Podia chamar à composição isso mesmo.

Na pintura, estamos num reino independente da natureza. Mesmo se Proust achava que cada grande artista introduz uma óptica nova, fazendo-nos experimentar outras lentes para vermos o mundo, estamos ainda do lado das formas e não do da "realidade".

Que ridícula presunção a da Verdurin de se julgar uma espécie de chanceler das etiquetas da Arca!

terça-feira, 17 de março de 2009


Covilhã (José Ames)

UM TARTUFO SEM MÓBIL


Tartuffe (Molière)


"Parecia-me, suspeitava que Fryderyk, que entretanto se tinha ajoelhado, "rezava" também ele - e até, estava seguro disso, sim, conhecendo bem a sua poltronaria, estava certo de que ele não fazia de conta, mas que realmente "rezava" - dito de outra maneira, ele não enganava simplesmente os outros, mas também se enganava a si mesmo. Ele "rezava" aos olhos dos outros e aos seus próprios olhos, mas a sua oração era apenas um biombo destinado a esconder a imensidade da sua não-oração... era portanto um acto de expulsão, um acto "excêntrico" que nos projectava para fora desta igreja no espaço infinito da não-fé absoluta, um acto negativo, o próprio acto da negação."

"La Pornographie" (Witold Gombrowicz)


A missa tinha sido privada de conteúdo "pelo comentário mudo mas assassino duma pessoa da assistência", prossegue o narrador.

Que poder de contaminação é este duma consciência que, embora "acerada, fria, penetrante, impiedosa" não transparece no mimetismo da personagem?

Como é que uma assistência piedosa poderia ser anulada pela presença do perfeito hipócrita? Este olhar que vê em Fryderyk um índice da verdade, uma amostra da realidade, e não a anomalia que de facto é, é o olhar da fé camaleónica.

Fryderyk, adoptando os gestos dos devotos não acenderá uma única centelha de fé em si próprio, como o pretende uma certa pedagogia jesuítica, porque não o faz num espírito de sinceridade.

Fryderyk, como adulto, está "envenenado pela morte". Por isso é que a sinceridade é nele uma força negativa e não uma força de conversão.

segunda-feira, 16 de março de 2009


(José Ames)

EXCOMUNHÃO


Trotsky, Lenin, and Kamenev (from left to right)
at the second Party Congress in 1919.



Kamenev critica o que considera as concessões
da XIV Conferência do Partido (1925) aos kulaks e aos elementos capitalistas. Staline pergunta: "Será isto verdade? Eu afirmo que não é verdade; que é uma calúnia contra o Partido. Afirmo que um Marxista não pode abordar assim a questão; que só um Liberal pode abordar a questão dessa maneira."
(Staline, "On the Opposition")


É a NEP (Nova Política Económica), inaugurada por Lenine que está em causa. Staline argumenta que era previsto que as forças capitalistas se aproveitassem da situação, mas que este "passo atrás" (Lenine) permitiria aumentar a produção nos campos e beneficiaria igualmente o Estado e as cooperativas.

Sabe-se como o progresso dos kulaks foi sol de pouca dura e que "os dois passos em frente" equivaleram à sua liquidação física, que, enfim, o Estado soviético nunca perdeu o controlo da situação e que o autor da crítica esquerdista às posições da Conferência pagou com a vida a sua divergência.

Mas o que quer dizer que um Marxista nunca abordaria assim a questão? Há no raciocínio do secretário-geral uma evidente dialéctica que, aparentemente, falta à crítica de Kamenev, mas esta é a linguagem da excomunhão que anuncia já o futuro reservado ao companheiro de Oulianov.

Assim, pensar como um marxista, é poder utilizar a mesma dialéctica no contrário da defesa de Staline, o qual veio pouco depois a fazer soar o dobre de finados da Nova Política Económica, substituindo-a pela colectivização e os planos quinquenais.

domingo, 15 de março de 2009


Bath (José Ames)

MÁSCARA DISFUNCIONAL


Witold Gombrowicz (1904-1969)


"Ofereceram-lhe chá que ele bebeu, ficou-lhe um pedaço de açúcar no pires, estendeu a mão para o apanhar, mas, sem dúvida, deve ter considerado esse gesto como insuficientemente motivado, porque recuou a mão; no entanto, este gesto de recuo, sendo no fundo ainda menos motivado, estendeu de novo a mão para o pedaço de açúcar que levou à boca e comeu - já não pelo prazer de o trincar mas para ter um comportamento mais ou menos decente... em relação ao açúcar ou em relação a nós...Querendo, sem dúvida, apagar esta impressão desagradável, ele tossiu, tirou um lenço do bolso - mas não ousou assoar-se e mexeu simplesmente o pé. Mas mexer o pé deve-lhe ter, sem dúvida, criado novas complicações, porque se calou e ficou completamente imobilizado."

"La Pornographie" (Witold Gombrowicz)


A personagem (Fryderyk), nas palavras do narrador, não faz outra coisa senão "comportar-se", é o nosso lado visível para os outros completamente determinado pelo exterior.

No cinema, "Zelig", de Woody Allen, pertence à mesma estirpe. Mas enquanto o camaleonismo de Zelig não parece trazer-lhe qualquer problema de consciência, Fryderyk sente-se comprometido pelo constante fiasco da sua "máscara". É como se tivesse perdido o instinto de se adaptar àquilo que os outros esperam de nós e precisasse, a todo o momento, de novas instruções.

Face à impossibilidade de se projectar na "forma superior", como diz Gombrowicz, "o homem atormentado pela sua máscara, fabricará para o seu próprio uso e às escondidas uma espécie de subcultura: um mundo construído com o lixo do mundo superior da cultura, domínio da fancaria, dos mitos impúberes, das paixões inconfessadas... domínio secundário, de compensação. É aí que nasce uma certa poesia envergonhada, uma certa beleza comprometedora.." É esta a pornografia.

A acção do romance passa-se no tempo da ocupação alemã. Magistralmente, a "persona" disfuncional de Fryderyk denuncia a verdade da situação política. Mas aponta também para uma ontologia da acção. O homem imobilizado pela máscara, como Fryderyk não está simplesmente à altura.

Em "La Pornographie" é a ligeireza e a irresponsabilidade dos adolescentes que torna a acção possível. Porém, esta seria muito melhor definida como paixão.

sábado, 14 de março de 2009


(José Ames)

O EROTISMO REFLECTIDO




"Ela terá necessidade até duma forma superior de erotismo. Aquilo de que pelos meus estimulantes lhe ensinei a suspeitar, a minha frieza lho fará então compreender, mas de maneira a que ela pense descobri-lo por si própria. Graças a isso, quererá apanhar-me desprevenido, acreditará superar-me em audácia e por aí me prender. A sua paixão tornar-se-á então decidida, enérgica, conclusiva, dialéctica, o seu beijo total, o seu abraço dum ímpeto irresistível - ela procurará a liberdade em mim e encontrá-la-á tanto melhor quanto mais eu a enlaçar. O noivado romper-se-á, e depois ela terá necessidade dum pouco de repouso, para que nenhuma fealdade se produza neste tumulto selvagem. A sua paixão recolher-se-á uma vez mais, e ela será minha.

"Journal d'un séducteur" (Sören Kierkegaard)


No cálculo do sedutor, Cordélia deverá passar duma paixão ingénua à paixão reflectida. Ele simula desinteressar-se, obrigando-a a recorrer a um artifício. "Porque ela sabe que eu possuo o erotismo", pensa, procurará vencê-lo nesse terreno.

A reflexão é o que o leva a considerar-se possuidor do erotismo (em vez de por ele ser possuído). O misterioso papel do erótico no amor é desviado para uma espécie de guerra, com as suas tácticas e as suas emboscadas.

Toda esta conjectura do sedutor é caracteristicamente misógina. A dar-se o caso de ser verdadeiro o amor de Cordélia, o estratagema só podia acabar mal para ele. E todo este maquiavelismo do Diário, apesar da sua inteligência, ou talvez por causa dela, deve ser levado à conta da imaturidade.

"As ligações perigosas", o romance de Laclos, é um exemplo de como o sedutor se deixa facilmente apanhar no seu próprio jogo.

sexta-feira, 13 de março de 2009


Porto (José Ames)

MODERNAS HERESIAS


Max Planck (1858/1947)


"É o papel diferente da álgebra que faz o abismo separando a ciência do século XX da dos séculos anteriores.(...) as relações entre noções não são reflectidas por inteiro nas relações entre letras; nomeadamente afirmações incompatíveis podem ter por equivalentes equações que o não são de modo algum. Quando depois de se terem traduzido as relações entre noções em álgebra, se manipulam as fórmulas tendo apenas em conta os dados da experiência e as leis próprias da álgebra, podem obter-se resultados que, uma vez de novo traduzidos em linguagem falada, chocam violentamente com o senso comum."

"À propos de la théorie des quanta" (Simone Weil)


Claro que o senso comum aqui não deve ser entendido como o que invocamos a propósito da teoria de que é o sol que anda à volta da terra.

Simone Weil, neste artigo, põe em causa a teoria da relatividade restrita e, sobretudo, a teoria dos quanta, debruçando-se sobre uma obra de Max Planck "Initiations à la physique".

A chamada comunidade científica verá nesta arremetida, para além dum incomensurável orgulho intelectual, um equívoco comparável aos do "cavaleiro da triste figura".

Reputações estabelecidas como as de Albert Einstein e Max Planck são de tal modo impressionantes que a possibilidade da velocidade da luz não ser de facto constante em todas as direcções ou a de se retomar a noção tradicional de energia como derivada do trabalho em vez duma definição destituída de sentido (nas palavras de Weil) será por certo remetida para as calendas gregas.

O próprio Planck explica como esta situação se pode perpetuar quase indefinidamente, ao dizer que as grandes ideias científicas não vingaram por terem convencido os seus adversários, mas porque estes entretanto morreram e "a geração ascendente se aclimatou".

É óbvio, sendo assim, que só uma filosofia audaz desafiando o espírito de casta dos meios especializados pode alterar o estado de coisas.

No caso da álgebra, que é uma espécie de máquina mental que nos evita termos de pensar em todas os passos dum dado processo, pergunto-me se, com a cultura do computador e da máquina de calcular, será viável outro método para chegar à verdade que não o sucesso.

Os paradoxos e as contradições estão lá certamente, mas só serão conhecidos se for preciso...

quinta-feira, 12 de março de 2009


(José Ames)

O FIM DA CRÍTICA?



"Embora o Iluminismo, concede, se reivindique da validade na sua tentativa original de racionalizar e clarificar as condições sociais, fracassa irremediavelmente porque associa a racionalização e a clarificação com uma operação específica de seres humanos individuais, concebidos como agentes sociais atomizados e moralmente investidos, todos os quais estão na posse de idênticas faculdades intelectuais."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King and Chris Thornhill)


A tónica na essência do ser humano como indivíduo dotado de razão é a primeira condição da Crítica, do espírito que nega todo o argumento de autoridade e o que se lhe quer apresentar como verdade. Equivale a uma ruptura com o estado teológico (Comte), no qual o indivíduo é uma realidade ilusória que só se compreende através da ideia de Deus.

A tentativa de explicar o indivíduo pelas condições sociais da comunicação embrenha-se em idênticas dificuldades. Luhmann está mais perto do estruturalismo do Marx da maturidade do que parece, e ambos desembocam no fim da Crítica.

Para Luhmann, os sistemas funcionam independentemente do que pensam os indivíduos e da cultura particular em que se integram. No determinismo histórico do autor de "Das Kapital", quanto mais desesperada a situação, mais próxima de se cumprir a profecia, pelo que todas as Revoluções até à data foram outras tantas manifestações da impaciência dos homens.

quarta-feira, 11 de março de 2009


Lisboa (José Ames)

A REALIDADE DO INACTUAL



"É muito provável que se os homens 'se colassem à realidade', matariam menos os semelhantes, mas já teriam certamente morrido de frio. Nós, animais desnaturados, temos o dom, ou o defeito, de nos alhearmos do presente, e encontrar mais presença no futuro ou no passado. Agarramos os indivíduos físicos através das pessoas morais - raças, nações ou partidos."

"O Fogo sagrado" (Régis Debray)


Se não nos podemos "colar à realidade" ( e há muitas maneiras de exprimir essa impossibilidade, como, por exemplo, considerar a língua materna como a nossa pátria ou a "Casa do Ser"), que realidade é essa a que temos de nos referir sempre que nos encontramos no ar condicionado dos laboratórios ou pensamos com toda a tradição científica?

Porque, evidentemente, a fria razão pode tornar-nos mais objectivos, mas não nos permite escapar à apropriação do objecto na linguagem.

E não é por isso que só o passado ou o futuro são "reais", na medida em que podem ser ditos e que o presente é tudo o que somos, mas por isso mesmo não pode ser dito?

terça-feira, 10 de março de 2009


(José Ames)

O MILÉNIO RADIOSO



"Uma pausa no começo, para permitir a tensão crescer; a partida numa nota baixa, algo hesitante; ondulações e variações de dicção, não certamente melodiosas, mas vívidas e altamente expressivas; um quase staccato de frases em rajada, seguidas de um rallentando no tempo certo para expor a ênfase dum ponto-chave; um uso teatral das mãos à medida que o discurso sobe em crescendo; um espírito sarcástico dirigido aos opositores: eram tudo aparelhos criados para maximizar o efeito. (...) Os que entravam em contacto com Hitler, conservando alguma distância crítica em relação a ele, estavam convencidos de que a maior parte do tempo representava."

"Hubris" (Ian Kershaw)


Que homem estava então por detrás da máscara?

Sabemos que se "era acima de tudo um consumado actor", a representação era um meio para um fim.

Hitler explorava um talento natural ao serviço da "sua missão".

Os laços que estabelecia com as massas ou com a entourage valiam tanto como os tratados em que punha a sua assinatura.

Era amoral, uma não-pessoa nas relações com os outros. Mas tinha uma ética (e não apenas uma lógica) que era a sua visão do futuro. E temos de admitir que essa visão correspondesse para ele a uma espécie disforme de altruísmo.

segunda-feira, 9 de março de 2009


V.N. de Gaia (José Ames)

HIERÓGLIFOS


"A mother and two children"(Alphonse van Beurden)



"Eu tenho seguido na minha existência uma marcha inversa à dos povos que só se servem da escrita fonética depois de considerarem apenas os caracteres como uma sequência de símbolos; eu que durante tantos anos tinha procurado a vida e o pensamento reais das pessoas exclusivamente no enunciado directo que elas me forneciam voluntariamente, por culpa delas acabei, pelo contrário, por só atribuir importância aos testemunhos que não são uma expressão racional e analítica da verdade."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


Só o sofrimento nos pode levar a abandonar um critério tão racional como o de julgar os outros pelas palavras que "ultrapassam a barreira dos seus dentes", para falar como Homero.

Mas o que no teatro é decisivo, porque só um dos sentidos concorre para o desfecho, na vida real, por tudo estar em aberto, encontramo-nos no reino dos hieróglifos e da sua interpretação. E há mil razões para alguém nos esconder o seu verdadeiro pensamento, desde as boas maneiras ao medo de despertar o ciúme, como acontece com Albertine, no romance de Proust.

E, como dizia Borges, a censura é a mãe de todas as metáforas. Quando a verdade não pode ser dita, todos os animais da fábula começam a falar.

domingo, 8 de março de 2009


(José Ames)

SÓ O RESTO SE SALVA




"É o que me impressiona em Paulo. É o que se encontra na Bíblia, na figura do profeta: o profeta fala sempre dum resto de Israel. Ele dirige-se a Israel como um todo, mas pronuncia 'só um resto será salvo' (...). O resto ou o que fica não é aqui uma porção numérica, mas a figura que cada povo deveria assumir no instante decisivo - neste caso, salvação ou eleição, mas qualquer outro instante também"

"Giorgio Agamben em entrevista à Vacarme"


Que distinção é esta que não corresponde à que existe entre a minoria e a maioria? Numa divisão, o resto é uma categoria em si, distinta do divisor e do dividendo.

Por um lado, não se pode entender o resto senão como residual, por outro, ele é o princípio duma nova operação.

A imagem é feliz aplicada à salvação. Porque os salvos são um grupo à parte, embora o profeta se dirija a todos. Há uma divisão a fazer que salva precisamente os que sobraram.

Agamben cita Marx, que em carta de 1843 a Arnold Ruge, diz: "Você não dirá que eu tenha o presente em grande estima, e se eu não desespero dele, é só porque a sua situação desesperada me enche de esperança."

Não é como se Marx estivesse a pensar no resto da divisão (a crise)? A esperança de que ele fala, porque a situação é desesperada, é metafísica e deduz-se das "leis históricas", como o resto das divisões imperfeitas.

sábado, 7 de março de 2009


Lisboa (José Ames)