sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Alcochete (José Ames)

O PLÁTANO

plátano em Hampstead Heath, Londres ("Dias com Árvores")


Um cão preto ladra como um anunciador de desgraças no alto dum prédio. Mas no horizonte, para lá do vale verde, o monte da Assunção sai da neblina.

E pela estrada, em Lamelas, é a altura dum plátano amigo ter as folhas vermelhas (a propósito, que árvore verdadeiramente divina, como um Shiva de mil braços, é aquela! Apetece profetizar, renascer debaixo dela, eu sei lá!).

E os castelos de nuvens, os postes e os fios a correr pelo céu, como grafismos para a música de Takemitsu.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

(José Ames)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Burgos (José Ames)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

(José Ames)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Canterbury (José Ames)

DUAS CONVERSÕES

"A conversão no caminho de Damasco"(Caravaggio)


“Assim, com grande sofreguidão, lancei mão do venerável estilo do teu espírito e, sobretudo, do apóstolo Paulo, e desapareceram aquelas questões, nas quais durante algum tempo me pareceu que ele se contradizia a si mesmo e que o texto do seu discurso não estava de acordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas.”


Santo Agostinho (“Confissões”)




Enfim, a Agostinho caíram-lhe as escamas dos olhos e ele passou a ver tudo de outro modo e a descobrir um espírito diferente na mesma letra. O que se passou?

Não foi a idade, nem a perda da saúde, não foram os exemplos, nem a filosofia. Tudo junto encontrou um ponto crítico que o próprio não sabia como nem quando alcançaria.

Depois de cair do cavalo, também Saulo se tornou Paulo e de perseguidor se fez apóstolo. Mas a sua conversão foi violenta e precisou de um milagre. “- Por que me persegues?”

Agostinho era outro homem. Quer ser convencido com razões. Aposto que salvou todo o passado, cujos erros foram etapas duma longa transformação e que ele se compraz em relatar para nossa edificação.

Paulo é um “traumatizado” e o que foi antes não pode ser confessado, nem sequer nomeado.

domingo, 25 de novembro de 2012

(José Ames)

O SURFISTA-EREMITA





As entrevistas de Joaquim Sapinho sobre "Deste lado da ressurreição" são luminosas. Mostram alguém que procura algo de muito secreto e que se serve para esse fim do cinema. Nesse sentido, é um cineasta diferente dos outros e faz um experimentalismo que não é essencialmente cinematográfico.

O que transparece dessas entrevistas é o homem que fala duma experiência exaltante, com  palavras por vezes inspiradas, o que torna o cineasta menos interessante.

O "Corte de cabelo", o seu filme de ficção anterior,  é quase um clássico comparado com este soberbo filme falhado. Falhado, porque aquilo que sabemos ser o pensamento do realizador não se concretiza inteiramente no ecrã. De resto, é ele quem o diz, ele obedeceu à luz e ao lugar, às sugestões que o corpo do actor (Pedro de Sousa) recebia da forma das coisas. O milagre do filme é o encontro deste actor intuitivo, sem ideias preconcebidas,  e o cineasta que procura confirmar uma ideia sobre o que liga o convento e o 'surf'.

"O que me interessava é que a personagem não soubesse o que é a fé. A vivência do corpo dele no mar estaria numa direcção ligada à fé, mas ele não sabe isso e eu também não. Estamos deste lado da ressurreição." (Público: 16.11.2012 - Vasco Câmara e Luís Miguel Oliveira)

As cenas de auto-flagelação no convento dos Capuchos são um momento difícil em que a "visão" do realizador se presta mais ao anacronismo, senão a um certo ridículo. Esse momento, e a forma como é vencida a dificuldade, é de resto a prova de que o cinema se impôs.

"-Um dia, eu e o Pedro dizemos um ao outro, "é amanhã". E ele entra para o convento pela primeira vez e diz: "Acho que já percebi tudo." Foi só entrar e fazer as cenas. Agora, como é que ele sabe o que é uma mortificação? Não sei.

-As cenas da mortificação são um espelho das cenas de surf...

-Sim, como já tinha o surf, ele pensou que era o mesmo, que era uma questão de corpo. As celas diziam-lhe o que tinha de fazer, que tinha de se pôr de joelhos, que tinha de se virar."

Se "Deste lado da ressurreição" perde algumas vezes o contacto com a ideia inspiradora, é também porque tinha de falhar ao aflorar o irrepresentável.

O surfista-eremita, depois da iniciação no convento, pergunta a Deus o que deve fazer. A resposta evangélica é: "Vai e reconstrói a minha igreja."

É assim que aquele que fugiu do mundo regressa à casa familiar. Mas nós só vemos a porta e ouvimos a campainha e as pancadas. Essa imagem remete-nos inequivocamente para o cinema: por exemplo, o das comédias de Lubitsch. É uma assinatura feliz e que "aponta para a máscara".

sábado, 24 de novembro de 2012

Alcobaça (José Ames)

AS NECESSIDADES NO MUSEU

Largo da Cruz - Rua de Contumil
(monumentosdesaparecidos.blogspot.com)


Ouvi, entre duas garfadas, ao balcão dum snack, alguém dizer que o que havia de bom nos museus eram as suas casas de banho.

Fiquei compreensivelmente chocado com esse oportunismo da tripa que, ignorando os tesouros acumulados e o zelo de tantos oficiantes do culto das artes, vem como um parasita depositar os seus ovos insignificantes na brancura imaculada das faianças.

Mas mudei de ideias hoje quando, no jardim da Cordoaria que arranjaram para uma população abstracta, descurando as necessidades dos velhos que ali gostam de jogar as cartas, vi um deles de costas para as pessoas que se encontravam na paragem do autocarro, aliviar a bexiga para o tronco dum plátano. Os urinóis deixaram de ser estéticos, tal como as costas dos bancos.

Talvez que as chamadas necessidades inferiores já só sejam valorizadas no museu...

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

(José Ames)

O MOMENTO QUE PASSA





"Aprende como se vivesses sempre, vive como se morresses amanhã."

(Mahatma Gandhi)



Há mais do que uma 'sede' de saber ou um vício de pedantismo na primeira injunção? Diz-se que o 'saber não ocupa lugar', mas isso não é uma razão para aprender.

Embora os testemunhos da época nos falem da vontade de Sócrates de aprender a tocar cítara já com a sentença de morte anunciada (seria ele pedagogo até ao fim?), o mais natural é que a consciência da brevidade da vida seja fatal ao desejo de aprender.

Aquele conselho de Gandhi (e de tantos outros) visa contrariar esse efeito e, no fundo, a encorajar-nos a viver, porque desde o primeiro dia de consciência precisamos dessa coragem. O saber, neste sentido, é uma oração. Sócrates disse tudo quanto à presunção de sabermos de facto.

O segundo conselho é, talvez, a verdadeira sabedoria. Exorta-nos a valorizar o momento que passa, sem que a morte seja o terror que é para quase todos, porque é ela que dá o valor ao momento que passa.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Antas (José Ames)

DESENRAIZAMENTO

aldokkan.com




Como dizia um especialista em demografia aquando dum colóquio realizado este ano na Gulbenkian: "A média actual é de 1,3 filhos por mulher em Portugal, quando na Europa é de 1,6. Há trinta anos que o país não consegue garantir a renovação natural da população (...)"

Mesmo que a crise económica seja superada dentro de meia-dúzia de anos, este desequilíbrio demográfico 'cortar-nos-á as asas'.

Dir-se-á que este é um problema sócio-cultural e que os governos pouco podem fazer para inverter o processo de definhamento colectivo. Contudo, esta tendência, que já existe há trinta anos, foi dramaticamente agravada com a emigração dos jovens ("segundo o secretário de Estado José Cesário, 650 mil portugueses terão emigrado nos últimos 5 anos, isto é, 130 mil/ano, enquanto que nos anos de 1960-73, os da guerra colonial, emigravam 100 mil/ano;" Manuel Loff no Público) e com a falta de emprego ou a precaridade deste, quando existe. É evidente que não estamos condenados a uma 'sangria desatada' e não teremos que chegar a 2100 com metade da população. Mas faz falta uma política demográfica que deverá repensar o papel do Estado no estímulo duma cultura favorável ao rejuvenescimento do país, sem se embaraçar com modismos do 'politicamente correcto' ou posições de falsa independência em relação ao que depreciativamente se chama de 'bem comum'. Foi um dos estigmas mais nocivos, porque infelizmente associado à retórica do salazarismo, o de ficarmos por muitos anos inibidos de recorrer a uma qualquer tradição. O regime anterior que, ironicamente, se reivindicava das raizes nacionais tornou-se com a revolução política a principal causa do desenraizamento.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

(José Ames)

A VIRGEM VERMELHA


Simone Weil (1909/1943)




"Ela acabou por considerar as metáforas sexuais como legítima propriedade da experiência mística e teria talvez admitido alguma verdade mesmo nas mais lúbricas hipóteses da psicanálise."


(Thomas Nevin, "Simone Weil, Portrait of a self-exiled Jew" )



A 'biografia' de T. Nevin sobre Simone Weil é notável a diversos títulos, mas o mais interessante é sem dúvida, sendo ele americano,  o seu ponto de vista 'exótico' em relação à tradição espiritual francesa.

O que ele diz acima baseia-se num preconceito fortemente 'materialista' que serve com demasiada facilidade à sua 'iconoclastia' daquela tradição espiritual e mística.

Os americanos, como sabemos, são muito dados a todas as formas sociais da religião. O seu proselitismo religioso é o mesmo que vemos na política. Estamos habituados a ver nas nossas ruas esses pares de jovens que levam 'the good word' a todo o mundo, inconscientes de que a sua ingenuidade possa parecer a muitos sinistra.

A expressão de Nevin sugere que a paixão de Simone por essa figura de Cristo já anunciada pela Grécia, a sua 'queda' no misticismo, enfim,  tem a natureza duma 'sublimação' sexual. Para uma mentalidade assim, o facto de ser muito provavelmente virgem explica muita coisa. Na verdade,  explica talvez demasiado.

Parece que a mesma condição ou a total abstinência nunca prejudicaram (antes pelo contrário) qualquer das personalidades masculinas que a Igreja ou o povo santificaram.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Vila do Conde (José Ames)

A COZINHEIRA NA ADMNISTRAÇÃO

Isaac Le Chapelier



"Foi uma lei revolucionária ( a Lei Le Chapelier de 14/6/1791) que aboliu as corporações, as associações de trabalho e de ajuda mútua, as assembleias de camponeses e de operários."

(Fr.Jean-Michel Potin)



A Revolução foi centralizadora, mas a figura do rei deixara de ser  o centro. O povo, abstracção racional, passou a tomar o lugar do monarca. O absolutismo preparou essa passagem a partir do momento em que se identificou com o Estado. 'L'état c'est moi' era uma usurpação incompreensível para um 'ungido do Senhor'. A natureza do estado é outra e ninguém a compreendeu melhor do que o autor daquela declaração prepotente.

Luís XIV conheceu a Fronda e o poder dividido, com a sensibilidade de um estadista. Estou a pensar no filme que Rossellini fez para a televisão. Aí se vê, que na peugada do seu mestre, Mazzarini, foi o grande percursor da centralização do estado europeu. Tal como a Razão, que os jacobinos iriam endeusar um século depois, o Estado é um poder redutor de qualquer poder paralelo.

Assim, os 'pais' da revolução moderna começaram por atacar tudo o que pusesse em causa o novo princípio dum poder regido pela racionalidade administrativa, incluindo todas as formas, algumas das quais foram recuperadas depois, de expressão e de organização populares.

É que a administração é racional em si mesma. Assim Lenine a concebia, já separada do político e podendo ser confiada a uma simples cozinheira.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

(José Ames)

MORTIFICAÇÃO



O retábulo de Isenheim de Grunewald



"Querendo impedir, como nos impõe o nosso cargo, com oportunos remédios, que o flagelo da perversidade herética difunda os seus venenos em prejuízo dos inocentes, seja permitido aos inquisidores supramencionados, Sprenger e Kramer, exercer o ofício inquisitorial naquelas terras."


(Inocêncio VIII, 1484, bula "Summis desiderantes affectibus", citado por Umberto Eco)




O papa Inocêncio, na declinante Idade Média, autoriza a tortura para defesa dos dogmas da sua Igreja. A segurança de todo o edifício católico depende da obediência 'inocente'. A obediência cívica não é suficiente.

Já, a propósito de Cássio que o havia de assassinar com os outros amigos de Bruto, o César do vate inglês diz que é preciso desconfiar dos homens magros, porque em vez de se contentarem com os prazeres ao seu alcance, pensam de mais.

É a lição dos falsos 'integrados' do Ocidente que, apesar dos sorrisos e das boas maneiras, pensam com o turbante. Como os judeus que, mesmo no auge duma assimilação conseguida, viviam para a sua Jerusalém Celeste, os novos 'heréticos' inventaram o paraíso dos heróis e das virgens por que vale a pena morrer, à medida em que o 'inimigo' de morte criou, na terra, a sua distopia tecnológica e guerreira.

A Inquisição explica-se mais pela histeria do espírito separado dum corpo que se despreza, como 'matéria vil', ou que é odiado como prisão da alma, do que pela política dos interesses. À luz desta política, esse movimento da Igreja foi uma calamidade. Como Spinoza foi perdido para nós, a nossa própria economia perdeu os seus mais dinâmicos agentes.

Teria esta cultura podido inventar o 'habeas corpus', quando fez dum corpo mortificado (é preciso o extremo dum Grunewald para ter uma ideia dessa mortificação) o símbolo dos símbolos?



domingo, 18 de novembro de 2012

Quinta da Bonjóia (José Ames)

ENCONTROS PARALELOS

James Joyce (1882/1941)




Nunca imaginei que Joyce e Proust tivessem alguma vez estado juntos num táxi. Tinham assistido no Ritz, em Paris, a uma homenagem a Stravinsky e Diaghilev e trocaram então breves palavras. À pergunta de Marcel se Joyce conhecia o duque de tal, foi-lhe respondido que não. E o mesmo monossílabo foi a resposta do dono da mais sumptuosa das prosas à pergunta da anfitriã sobre se tinha lido tal passagem do “Ulisses" (contado por Joyce, segundo Alain de Botton).

Proust ia morrer nesse ano (1922) e Joyce acabava de publicar a sua obra-prima e ia lançar-se no oceano do “Finnigan’s Wake” (uma história universal, nas suas palavras).

Nesse improvável encontro, pensamos no desperdício, na ocasião perdida. Pois podemos imaginar o que os dois maiores autores do século teriam a dizer um ao outro.

Proust não teve tempo de ler o “Ulisses” e, numa entrevista, também em 1922, Joyce lamenta que o autor da “Recherche” tenha abandonado o seu primeiro estilo.


Mas duas religiões podem de facto dialogar? A tolerância, esse conceito tão politicamente correcto, é sequer pensável em autores que se consumiram na sua obra?

sábado, 17 de novembro de 2012

(José Ames)

O DEDO INDICADOR

Toilet ready-made (1917 - Marcel Duchamp)




O autocarro pára por causa da chuva (muita gente traz o carro nestes dias). Pela janela, vejo, por entre os cordões de água, o tronco branco dum choupo, cortado de algumas linhas horizontais e os círculos escuros de cada nó distribuídos segundo uma ordem que parece arbitrária, mas que evidentemente se explicará por uma série de factores genéticos, humanos e ambientais. Essas “causas” estão tão longe da minha percepção que é como se nunca tivessem existido ou como se a árvore em vez dum ser natural fosse a criação dum espírito impenetrável.

Não importa. O que atraiu a minha atenção foi a beleza da secção do tronco que se oferecia aos meus olhos. Não dum tipo natural, mas verdadeiramente abstracta, que se visse numa moldura admiraria de igual modo.

Bom, esta capacidade moderna de fazer de qualquer corte do mundo um conjunto expressivo ou significativo não é novidade desde Duchamp, Maigritte ou Wharol, entre muitos outros.

O que confere o estatuto de arte é, desde então, o dedo indicador.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Antas (José Ames)

MARCIANOS




Um homem, de quico na cabeça e em fato de banho (neste Novembro que pede já uma camisola), joelheira, o cabelo apanhado atrás num puxo, constrói nos rochedos da Foz o que me parece um dique feito de pedras e areia, “julgando-se feliz talvez”.

Suponho que seria assim que um marciano, mas menos mal intencionado do que os de Wells, olharia para a azáfama da nossa colmeia, em que tudo aquilo que não parece “santificado” pela necessidade tem o ar duma irremissível futilidade.

Mas a ilusão é possível que seja tão indispensável à vida como os artigos de primeira necessidade.


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

(José Ames)



SABÃO METAFÍSICO

Une petite femme s'occupant à savonner (1737- Chardin)




"A tese que pretende que um grande consumo de sabão testemunha de se ser muito limpo não será forçosamente justa em moral, em que se revelarão mais justas pelo contrário as teorias modernas segundo as quais a obsessão pela higiene seria o sintoma duma falta de limpeza interna. Seria uma útil experiência limitar por uma vez ao mínimo a despesa moral, de qualquer espécie que seja, que acompanha todos os nossos actos, e de cada um se contentar em ser moral apenas nos casos excepcionais em que se trata verdadeiramente de o ser, concedendo aos seus actos, em todos os outros casos, não mais reflexão do que à normalização indispensável dos parafusos e dos lápis."



Robert Musil ("O Homem sem Qualidades")



Não saberíamos, noutros tempos, explicar o excesso de sabão senão pelo gosto do desperdício, por exemplo.

Mais refinada, a nossa época vê nisso uma contaminação do moral pelo físico, da palavra pela metáfora.

E enquanto a sujidade do corpo justifica apenas uma quantidade limitada de sabão, a da alma pode não ter limite.

Antes da psicanálise, já existiam gestos obsessivos (Lady Mac Beth tentando lavar as mãos ensanguentadas). Mas é agora que procuramos lê-los como linguagem.

Assim, encontramos tudo dentro de nós ( a linguagem duplica o mundo). De tal modo que eliminadas as hipóteses que foram por algum tempo necessárias, voltamos ao princípio do "tudo são deuses" (Tales) ou do tudo é linguagem.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Roma (José Ames)


SUPERSTIÇÃO





"Porque da mesma maneira que o rugido do trovão, como dizem os partidários dos Epicuristas, não significa a manifestação dum qualquer deus - é no entanto o que imaginam as pessoas comuns e supersticiosas (...)"

(Sextus Empiricus)


Não foi fácil erradicar essa superstição popular, tão útil durante o tempo que durou, se virmos bem as coisas.

A explicação moderna no espírito das gentes não é mais do que uma opinião 'verdadeira', no entanto suficiente para uma vida normal, no que se aproxima estranhamente da superstição que muitos crêem um fenómeno ultrapassado.Se nos virarmos para as 'ciências' sociais, então o que mais falta são 'epicuristas' que tenham deixado a magia e a superstição para trás.

Nunca se falou tanto de economia como no tempo presente, nunca se ouviu tanto os economistas dos vários quadrantes fazerem tantas profecias e 'explicarem' os factos que não souberam prever. Mas a superstição é de tal ordem e está-lhes tão entranhada que podem falhar como as Moody e os Fitch na previsão da grande crise da economia ocidental ou recomendarem purgas que matam o doente como a troika a que a Europa dos grandes negócios nos atrelou, que nem uns nem outros aprendem com a experiência. Continuam como os moinhos budistas a recitar a sua ladainha. Acreditam no deus escondido no ribombo do trovão...

Ou então, não podiam estar mais conscientes dos desastres que provocaram (pelo menos já percebemos um princípio de divisão), mas como bons funcionários seguem ordens e até mudar a directiva alemã, a realidade só tem que esperar.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

(José Ames)

A LÓGICA DA DONA DE CASA

Medina Carreira


A televisão fez do prof. Medina Carreira, antigo ministro das Finanças de Mário Soares, o modelo dum estilo de comunicação frontal, 'sem papas na língua' e que toda a gente entende. Mesmo quando recorre a gráficos, qualquer pessoa, 'mesmo sem ser um Einstein', como diria o meu antigo director, pode compreender (se não for doutrinário).

No seu último programa na TVI, repetiu, sobre o Estado Social, o que tem vindo a dizer, incansavelmente, desde há alguns anos.  Que já estávamos a caminho da falência, mesmo antes da crise dos 'subprime' de 2007/2008 e que os números eram tão eloquentes então como o são agora. A crueza da situação era apenas velada pelo crédito barato que, agora, parece ter acabado (menos para os Alemães que o têm a menos do que zero e que depois no-lo concedem a 3,5%).

Tanta lógica chega a ser arrepiante, visto que ninguém conhece o futuro, e mesmo se as projecções de Medina Carreira (por exemplo que dentro de 7 anos, se não se fizer nada, o Estado Social vem abaixo) dispensam os algoritmos mais complicados, porque são simples contas de 'dona de casa', não há maneira de termos todos os dados sobre o que aí vem. Ainda há um ano, por exemplo, alguém previa que a dependência dos EUA em relação às importações de petróleo poderia vir a ser coisa do passado apenas daqui a uns anos?

Os cálculos 'económicos' e a lógica do professor no programa 'Olhos nos Olhos' tratam a relação entre o presente e o futuro como um desastre de comboio. Se um milagre não desviar os carris, a colisão não pode ser evitada. Comboio, carris e obstáculo formam um sistema fechado quase perfeitamente previsível (porque pode, por exemplo, ir a bordo um terrorista que provoque um outro tipo de acidente).

Medina Carreira pode alegar que já não está no domínio da profecia, mas da realidade. A 'colisão' ('au ralenti') já começou.

A questão é saber, no caso português, se é mais prudente ser pessimista (tudo se passará conforme a lógica 'restrita'), e o governo vai continuar a desmantelar o Estado Social na aposta de que isso relançará a economia (mas Gaspar já falhou a primeira aposta duma forma que, não fora a troika e a chancelarina, já merecia ter sido demitido - mas a política é mais destas do que dele, não é?), ou fazer a aposta contrária, contra essa mesma lógica.

O problema é que esse 'optimismo' foi confundido com a redita irresponsabilidade de um Sócrates estigmatizado (mesmo quando obedecia às directivas europeias, por um tempo, keynesianas, tal como agora o faz Passos Coelho com directivas opostas).

E há, evidentemente, os demagogos da 'multiplicação dos pães', mesmo sem economia e só com impostos para Belmiro de Azevedo e outros como ele.

A parábola da figueira seca, em S. Marcos, vem a propósito. Se ficarmos pelas teses de Medina Carreira, apesar dos seus números serem, talvez, incontestáveis, mereceremos a maldição que Cristo lançou à figueira (apesar de não ser a estação dos figos).

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Porec (Ístria)

A LETRA E A RAIZ

"A Torah"



"A Escritura não significa a subordinação do espírito à letra, mas 'substituição da letra pelo solo. O espírito é livre na letra e em cadeias na raiz. É sobre o terreno árido do deserto em que nada se pode fixar que o verdadeiro espírito desce  para a sua universal realização.'"



(Thomas Nevin, citando Émmanuel Lévinas)


Toda a problemática do interesse é escritural (e escriturária). Mas a eleição do deserto e do povo do deserto pelo 'verdadeiro espírito' parece apenas um ponto de vista 'étnico'.

Seria preciso acreditar numa 'história sagrada' para fazer jus a um argumento desses. O Cristianismo, que Simone Weil pretende subtrair às fraldas judaicas no rapto miraculoso do espírito grego, é fruto da auto-negação duma judia assimilada à cultura francesa, como Nevin reclama, ou é uma outra invocação do deserto (simbólico, este)?

O deserto dum mundo sem 'os interesses', sem dinheiro e sem poder. Numa palavra, sem a idolatria em que uns e outros, judeus e cristãos, sempre foram relapsos.

A Bíblia sem as suas poucas  jóias de espiritualidade é mundana sem apelo nem agravo, e é o 'Novo Testamento', inspirado pelo platonismo que liberta o verdadeiro espírito cristão, como dizia Simone?

Como todos os fundadores duma religião (e muitos há que estão próximos da hagiografia, no caso da autora de 'Attente de Dieu'), Simone Weil corta com a tradição. E uma espada é uma espada: não pretende ser 'justa', mas 'verdadeira'.



domingo, 11 de novembro de 2012

(José Ames)

O MOTOR DA RELIGIÃO

Régis Debray



""Somos todos mentiras que falam verdade". A confissão que Jean Cocteau punha na boca dos poetas, não poderia ter sido antecipada pelos fundadores da religião, os profetas e todos os administradores do sagrado colectivo, laico e clerical, que fazem reluzir uma grande promessa nas suas prédicas e sermões?"



Régis Debray ("O fogo sagrado")



Debray reincide nos caminhos do divino, depois de "Deus: um itinerário" com "O fogo sagrado".

Uma profusão de fórmulas brilhantes, estonteantes, documentos, ao encontro desta pergunta que crentes e não crentes se fazem hoje em dia sobre o significado da permanente actualidade e vitalidade do fenómeno religioso, num mundo dessacralizado, que mergulha no ambiente da tecnologia e duma ciência consensual mesmo entre culturas inimigas.

O autor, através da análise das irmandades, hostilidades, identidades e unidades, à procura das raízes da religião pela qual os homens escolhem o invisível e o irreal em detrimento do que é o domínio da ciência, na aparência triunfante.

E afirma que no princípio talvez não seja o Verbo, mas o Outro, frente ao qual a distinção é uma questão de vida e de morte. A religião radicaliza e diferencia, ao mesmo tempo que proporciona a coesão dos seus fiéis. A Razão como unificadora, em comparação, é inoperante como o verificaram os jacobinos de Robespierre.

Análise sedutora mas redutora? Porque ao mesmo tempo que vemos o motor, como pode funcionar a religião e como os homens, através dela, negam e afirmam, sabemos que isso não é tudo e que talvez não seja o essencial.

sábado, 10 de novembro de 2012

Porto (José Ames)

A TEIA DOS DETALHES






“Todo o progresso constitui um ganho de detalhe, mas um corte no conjunto; é um crescimento de potência que desemboca num progressivo crescimento da impotência, e é algo contra o que nada podemos fazer. Isso lembrou a Ulrich essa massa de factos e descobertas, engrossando quase de hora em hora, da qual o espírito tem de desviar o seu olhar se quiser examinar com precisão seja que problema for.”

Robert Musil (“O Homem sem Qualidades”)




Costuma-se dizer que quanto mais se aprende menos se sabe, o que faz todo o sentido, uma vez que, à medida que vamos alargando o horizonte do nosso conhecimento, vemos reduzir-se a importância do que já sabemos e a sua pertinência.

Mas o que Musil diz não é isso.

Ele afirma que o que julgamos saber é um obstáculo para a nossa inteligência, do qual temos que nos alhear para pensar verdadeiramente.

De que nos serve, então, a acumulação de “detalhes”? Para nos enchermos de nós, numa altura em que o erro antropocêntrico parece julgado.

A nossa teia tornou-se tão espessa que já não deixa passar a luz.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

(José Ames)