As pirâmides são uma espécie de cálculo espiritual. Pense-se nisto: a família de Cheops desviou para o Estado faraónico todas as energias públicas. O Egipto desse tempo, sendo uma sociedade eminentemente religiosa, assistiu ao total encerramento dos templos e à proibição dos sacrifícios através de decreto.
É preciso ter presente o esoterismo do conhecimento religioso e a confusão dos poderes político e ideológico para compreender um fenómeno como esse, que bem pode representar a perfeita centralização social. É porque não se entende de todo em todo uma acção sem contrapartida e a existência nas relações inter-subjectivas de algo como um princípio de conservação da energia, que chegamos à perfeita intuição do simbólico.
Alguma vez as estruturas do sistema de produção económico poderiam dar conta dum desperdício abissal como é o dos túmulos de Gisé? Esse prodígio de engenharia que ainda hoje causa admiração não é contudo apreciado pelo que é: a imponente e absurda dimensão – se esquecermos a configuração do deserto – ou as dificuldades inumeráveis que foi preciso vencer, como se podem explicar à luz duma racionalidade económica ou duma análise moderna do poder?
O chefe, por outro lado, não procurou um serviço pessoal ou um reforço do poder político. Pelo contrário, a ausência de revolta e de luta política indicam-nos que nenhum acrescento era necessário para ter o país na mão. Que fácil seria aos sacerdotes levantar o povo contra essa medida ímpia e anti-popular se houvesse a menor brecha na autoridade.
Foi preciso, segundo Heródoto, a subida ao trono de Mikerinos, seu filho, para se dar a mudança e, digo eu, para concebê-la. Até aí, diz o mesmo historiador que os populares se recusaram tão-só a dar existência à memória do monarca, designando o lugar das pirâmides pelo nome dum simples pastor que aí viveu. Foi, portanto, a história sacerdotal e faraónica que nos trouxe, indemne, essa terrível inscrição na pedra. Tão pouca resistência para trinta anos de trabalhos forçados sob o jugo de Cheops. Uma simples troca de palavras, para responder a mais de um século sem culto parece irrisória forma de luta. Mas é assim que eu vejo o caso: a pirâmide prolongou a religião dos mortos e a religião tout court. O nome do faraó foi esquecido em consequência. Todo o esforço colectivo fez do túmulo de Cheops um resíduo de alma popular, por causa da opressão e para além dela. A calamidade não inspira revolta mas humilhação e obediência. A ideia faraónica desabou da enorme altura a que se ergue o poder divino para inspirar na termiteira humana a arquitectura dum deus, contra a pessoa de Cheops, ocasionalmente.
Coisas mais custosas embora foram mais precárias. Napoleão, recente enxerto na vide gaulesa, foi sensível à eternidade de quarenta séculos. Marx, teria certamente explicado essa catástrofe económica, social e religiosa pelo despotismo “asiático”.
Mikerinos, o filho generoso, morreu cedo e absolveu a tirania paterna. Ela, afinal, era o cumprimento dum oráculo. Eis que o despotismo se torna num caso da pulsão de morte. Ou melhor dizendo, eis que a realidade deixou de ser histórica, e que a matéria se volveu no princípio contrário.
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