terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A ESSÊNCIA E O ÍCONE



Miguel de Cervantes


O "Dom Quixote" está cheio de digressões e de histórias dentro da história principal. É ainda um repositório das convenções literárias de alguns romances de cavalaria, sendo a sátira deles.

Os encontros como o de Cardénio e Lucinda ou Zoraida e o capitão com o irmão deste sucedem-se sem quaisquer problemas de verosimilhança.

É um pouco como antes da introdução da perspectiva na pintura do Quatrocento. Como o fundo é deixado ao arbítrio ou aos ensinamentos da Igreja e a distância não é realmente tida em conta nas relações das figuras entre si, podemos perfeitamente passar duma prisão em Argel para a estalagem espanhola onde o irmão da personagem já desesperava de o encontrar.

A ideia de unidade da obra e do género literário não se punha para Cervantes.

Se o seu herói se presta, e mais do que nunca, a manter-se um símbolo actual é apesar dessa proliferação de desvios e de sub-enredos, embora um "Dom Quixote" expurgado não fosse mais quixotesco. Seria, porventura, o que hoje teria escrito Cervantes, com a consciência do marxismo, da psicanálise e de outras ideias que entretanto tiveram o seu tempo.

Mas a lógica desse desbaste do romance, à procura da sua essência, levar-nos ia apenas mais depressa ao ícone moderno, sem história, nem profundidade.

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