terça-feira, 3 de junho de 2008

CIORAN E O ENGENHEIRO


Fernando Pessoa

"Quem ama não examina o amor, quem age não medita sobre a acção: se eu estudo o meu "próximo", é que ele deixou de o ser, e não sou já "eu", se me analiso: torno-me objecto, ao mesmo título que os outros. O crente que pesa a sua fé acaba por pôr Deus na balança, e só conserva o seu fervor por medo de o perder. Colocado nos antípodas da ingenuidade da existência integral e autêntica, o moralista esgota-se num frente a frente consigo mesmo e com os outros: farsante, microcosmos de segundos pensamentos, não suporta o artificio que os homens, para viver, aceitam espontaneamente e incorporam na sua natureza."

"Précis de décomposition" (E.M. Cioran)


Como isto parece forte e verdadeiro! Muito na linha do que dizia o nosso engenheiro Álvaro de Campos, que o filósofo romeno não terá lido.

A vida é para ser vivida e não pensada. O pensamento murcha a flor colhida. Ele antecipa-se e apresenta-nos o viço perdido e a poeira da flor.

Mais vale pensar só para resolver um problema de impostos ou a questão prática que a profissão nos coloca.

"Jesus Cristo, ao que consta, não tinha biblioteca." Ler para quê? Quanto melhor não é chegar à velhice, percorridas todas as etapas de uma vida "espontânea", com a sensação de que tudo foi, o quer que tenha sido, como devia ser. Não fora tudo tão rápido e quase como num sonho... Como o náufrago cuja cabeça assoma por um momento à superfície da água e logo desaparece no abismo.

Se não fôssemos tão analistas e neuróticos um pouco, a própria espécie podia já ter sido esse sonho.

Os nossos genes não ouvem Álvaro de Campos.

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