"Dersou Ouzala" (1975-Akira Kurosawa)
O velho “gold” não sabe a idade, mas julga ter vivido muito tempo. Não é esta a maneira menos alienada de viver? O caçador que fala com o fogo e o tigre não conta os anos, nem precisa de víveres ou de dinheiro. Caçar martas é a sua vida e isso dá algum dinheiro para tabaco ou munições. A sua sabedoria não tem nada de selvagem. É um fruto da solidão e da experiência. Sabes o que é o sol, tu? pergunta-lhe o soldado trocista: - toda a gente sabe o que é o sol. Porquê, tu não sabes? Se nunca vistes o sol, olha para ele!
O filme começa mostrando o desprezo e a incredulidade dos russos “civilizados” perante aquela criatura, que saindo da noite se vem sentar, como se nada fosse, perto da fogueira e, tranquilamente, prepara o seu cachimbo. Só o capitão o estuda, meio comovido. Mas eles vão de surpresa em surpresa, vencidos pela subtileza do batedor da taiga. Compreendem pouco a pouco que são, naquele meio inóspito, frágeis e ignorantes como crianças. Dersou prefere atirar no fio para aproveitar a garrafa: - onde é que se encontra uma na taiga? E o exercício de pontaria consolida duma vez por todas a superioridade do guia. Até aí a selva parece um enigma que só ele entende. As suas deduções causam espanto: - como é que sabes que a casa deve estar próxima? – o homem tirou a casca da árvore para fazer o telhado. – Como sabes que é um velho? – porque apagou as pegadas. E os velhos marcam os calcanhares. Os jovens andam na ponta dos pés.
Agora revela-se exímio numa especialidade militar. Esta espécie de Sherlock Holmes siberiano é ainda ingénuo e bom. Conserta a casa abandonada e pede ao capitão para ali se deixar com a lenha que ele pôs a seco, arroz, fósforos e sal. Para quem precisar disso, embrenhado na montanha.
Vemos um velho chinês abúlico sentado à porta da cabana. O capitão, à noite, quer convidá-lo para junto do fogo. O guia responde: - não o perturbemos. Esta noite ele pensou muito na sua casa e no seu jardim. E, com efeito, no dia seguinte o chinês exilado naquele ermo desde que o irmão lhe roubou a noiva, regressa ao seu país.
Compreendemos que a bondade faz parte das evidências de Dersou Ouzala, como o sol e a lua, o vento e a água. É a velhice que é má, que o torna presa da imaginação, a ponto de ter medo do amba. Ao disparar sobre o tigre, é o fim que se avizinha. A selva deixa de ser amiga e coloquiante. Torna-se rabugento, perde a visão. Implora ao capitão que o leve para a cidade. Mas a casa é incompreensível para Dersou. Passa o tempo a olhar a lareira.Chegado aqui, vejo que tentei desenrolar a história dum filme que não se pode contar. Que dizer da cena no lago gelado, com o sol fugindo e Dersou gritando ao companheiro exausto para trabalhar depressa? Quando este acorda, salvo do sono mortal, dentro daquele igloo improvisado, compreende que o seu tripé de topógrafo serviu ao maravilhoso “gold” para lhe arranjar um tecto.
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