"Bouvard já nem acreditava na matéria. A certeza de que nada existe (por muito deplorável que isso possa ser) não é menos uma certeza. Poucas pessoas são capazes de a ter. Essa transcendência inspirou-lhes o orgulho e eles queriam exibi-la: uma ocasião se ofereceu."
"Bouvard et Pécuchet" (Gustave Flaubert)
A imagem destes "caracóis que se esforçam por escalar o Monte Branco até ao cume" (Taine) representa bem uma ilusão que o progresso das ciências e os grandes sistemas filosóficos do século XIX permitiam.
A ambição deste dois burgueses de se apoderarem de todo o conhecimento, a própria ideia do saber enciclopédico que a pena de Flaubert estigmatizou com os traços do ridículo e da estupidez é mais universal do que parece e é representativa dum optimismo ingénuo que não nos pode parecer tal apenas porque ainda vivemos sob a sua influência.
Flaubert conclui a história na desilusão e no fracasso. Os dois caracóis só atingiram o cume para perderem todas as certezas e verem tudo o que consideravam conhecimento varrido pelos ventos da inutilidade.
No final (esboçado), Bouvard e Pécuchet voltam ao seu antigo ofício de copistas. E é como se a estupidez das personagens encontrasse naquele scriptorium medieval que mandaram construir a antiga religião dos pergaminhos.
Não há aqui uma réplica do cepticismo ao comentário das Escrituras que foi, num certo sentido, a Idade Média?
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