"Nos últimos anos da sua existência, quando ele se encontrou completamente desmunido na Suíça, Musil expiou duramente o seu desprezo pelo dinheiro. Por muito penoso que seja pensar no que essa situação teve de humilhante para ele, eu não gostaria de imaginá-lo de outra maneira. O seu soberano desprezo pelo dinheiro, que não implicava qualquer atracção pela vida ascética, essa falta total nele do dom de se enriquecer, tão espalhado e banalizado que se hesita em qualificá-lo como um "dom", revelam, parece-me, a essência mais íntima de um ser."
"Histoire d'une vie" (Elias Canetti)
Enquanto escrevia "O Homem Sem Qualidades", Musil viveu do apoio de alguns admiradores, zelosamente seleccionados no que Canetti compara a uma espécie de ordem de cavalaria. Mas com a ocupação da Áustria pelos nazis, a sociedade desfez-se, a maioria dos seus membros sendo judeus.
Eu sei que é demasiado fácil supor uma qualquer identidade entre o orgulho intelectual, que explica tanto do desprezo de Musil pelo dinheiro, perante o espectáculo tão comum dos que se rendem à sua sedução, e um estilo literário sem concessões e despreocupado com o facto da sua obra ser entendida por tão poucos.
O dinheiro funciona aqui, já fora da economia, como um verdadeiro equivalente geral de tudo quanto se opõe ao espírito. É ainda o "não se pode servir a dois amos".
Pelo testemunho de Canetti, vemos que Musil era susceptível como o diabo, tomando ofensa do mais ligeiro indício. De certo modo, faz-me lembrar a personagem proustiana do barão de Charlus, menos o seu vício, e substituindo os pergaminhos do nascimento pelos da inteligência.
Sem a fraqueza de Charlus, o seu orgulho podia ser mais imoderado. E chegou ao ponto de suspeitar um homem como H. Broch de ter pilhado o seu opus magnum. Este acusou-o de ser "um rei no reino do papel". Canetti diz que ele foi de facto um rei, mas em "O Homem Sem Qualidades".
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