"Este procedimento consiste em agir metodicamente sobre os seus pensamentos, mesmo em circunstâncias perturbantes, do mesmo modo que um homem manda coser os botões nos seus fatos, porque não conseguiria mais do que perder tempo se imaginasse poder despir estes mais depressa sem aqueles."
"L'Homme Sans Qualités" (Robert Musil)
Quem o diz é Hagauer, um professor pedante.
Não sei se todos gostaríamos de proceder por ordem. De qualquer modo, como não somos feitos só de razão e de lógica, e o mundo entra em nós sem pedir licença, o exemplo dos botões faz sentido apenas na visão ideal das coisas. Na verdade, as pessoas só pensam metodicamente na sua área de especialização, em laboratório. E a lareira de Descartes é um desses laboratórios, sem retortas, nem alambiques, onde é possível nos isolarmos do mundo.
Com método, atingimos mais depressa resultados. Mas a própria ciência avança muitas vezes quando a disciplina do método sofre um eclipse. É o que se passa com todas as descobertas devidas ao acaso (mesmo se o pensamento metódico criou certas condições necessárias à 'revelação').
Quando o filósofo do 'cogito' uniu o processo científico e a descoberta da verdade às regras da lógica, deu início ao desenvolvimento imparável de uma ciência que já não tinha que ser fiel a Deus, ou a qualquer transcendência, mas que só devia essa fidelidade a si própria.
Há um outro Descartes, porém, um Descartes crente, que teorizou sobre a 'generosidade' que é "a virtude da auto-estima fundada no uso do nosso livre-arbítrio e no império que temos sobre as nossas vontades."
Note-se que a liberdade individual não é aqui abstracta, pois é um exercício da vontade. E se a palavra generosidade parece estranha por a considerarmos sempre como tendo como objecto o outro ou os outros, neste 'Príncipe do Entendimento', como lhe chamava Chartier, ela, pelo contrário, foca-se no próprio sujeito e na nobreza, digamos assim, a perfeição que lhe permite elevar os outros a esse mesmo plano. Um espírito vazio não tem nada para dar. Ser generoso é, portanto, acção e acção virtuosa, que, orgulhosamente, não precisa de Deus. E é assim que os dois Descartes se encontram.
Mas só o primeiro crê no método. O outro crê no Homem.
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