quarta-feira, 2 de novembro de 2016

LIMAR ARESTAS



Mahatma Gandhi



Maltratado pelo ritmo da cidade, pela fúria de trabalhar mais depressa, o corpo protesta abandonado pela razão. E eu procuro calá-lo, deixando de tomar café e de me deitar tarde. Mas o medo de que ele queira dizer-me uma coisa importante leva-me ao médico.

Posso viver com os sintomas conhecidos sem lhes dar excessiva atenção. É como se o corpo perdesse a faculdade de se fazer ouvir e de interessar este inquilino sem respeito. Porém, basta um sinal incompreensível para me lançar em terríveis conjecturas.


Que me importa o ruído do motor no carro do amigo que me leva a casa? Mas bem vejo como isso se faz ruga e distrai da conversação. Quanto mais esta outra máquina, pela qual existo e penso, parece merecer os cuidados dum mecânico.


Mas o que trago do consultório é a ordem de viver doutra maneira, porque o médico é honesto e não cede perante a minha imaginação.


Há um pensamento em Gandhi que ilustra bem esta loucura da medicina. Ele quis sempre sofrer todas as consequências dos seus actos. Um jantar copioso que nos soube bem pode resultar numa indigestão. Pois bem, é preciso aguentá-la. Excitei-me durante o dia e não consigo dormir? Que a
mão se mantenha longe do frasco das pílulas. É que quando recorremos às drogas, desfazemo-nos duma parte do corpo e perdemos a experiência necessária. Se nos podemos furtar à dor e ao desconforto que são efeito dos nossos actos voluntários, entramos num círculo de irrealidade e não somos mais responsáveis.


Esta medicina apaga os ângulos da vida e habitua-nos a uma espécie de tristeza que é feita de prazeres sem risco e sem medida.


A criança se crescesse tão protegida nunca chegaria a ser homem.

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