quinta-feira, 10 de novembro de 2016

ANAMNESE DE UMA NAÇÃO

(American Civil War)



"'Se  quiserem  fazer  eleições  com analfabetos', berrava  ele  aos evolucionistas, 'façam-nas  os  senhores, porque  eu  quero  fazê-las  com votos conscientes... Indivíduos  que  não conhecem  os  confins  da  sua  paróquia, que  não têm  ideias  nítidas  e  exactas  de  coisa  nenhuma,  nem  de  nenhuma  pessoa,  não devem  ir  à  urna,  para  não  se  dizer  que  foi  com  carneiros  que  confirmámos a República!' Esses  indivíduos  eram  quatro milhões  e  meio  de  portugueses, mais de quatro quintos do país."

(Vasco Pulido Valente in "A República Velha")

Muitos democratas nos EUA talvez gostassem de excluir do direito de votar a maioria de 'analfabetos' que Donald Trump conseguiu apascentar. São pessoas "que não conhecem os confins da sua paróquia", nem estão interessadas na retórica da globalização. E, também, se podia dizer que  "não têm  ideias  nítidas  e  exactas  de  coisa  nenhuma". Desconfiam dos líderes da nação, de Walt Street e da Google. Numa palavra, não são modernas, nem 'politicamente correctas'. Fazem lembrar aquele povo dos Apalaches que persegue os domingueiros da canoagem em 'Deliverance', o filme de John Boorman. Tal como essa gente perdida das montanhas por onde passa o rio Chattooga, a nova maioria parece ter surgido do nada, tal era o ruído de fundo da América dos prodígios, da alta finança e da tecnologia.

Haverá sequer uma linguagem comum? A América da prosperidade escondia um 'deficiente' no quarto da criada. E uma personagem 'clownesca' (um Joker como o de Batman?) soube dar-lhes voz e falar a sua   linguagem reprimida, por muito que os palavrões e a gesticulação malcriada escandalizem os 'afluentes', os únicos que existem para a 'indústria dos sonhos', que formata o imaginário americano.

No Portugal do princípio do século XX, os quatro quintos do país rural e analfabeto voltaram facilmente ao seu longo silêncio pária, como pretendia o chefe do partido republicano. Afonso Costa não era um democrata.

O povo americano viu-se, nestas eleições, num espelho fragmentado. As circunstâncias do  'nascimento de uma nação' trabalham o fundo do pensamento de todos. Afinal, talvez haja uma falha maior do que a de Santo André, no coração americano.

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