"'Se quiserem fazer eleições com analfabetos', berrava ele aos evolucionistas, 'façam-nas os senhores, porque eu quero fazê-las com votos conscientes... Indivíduos que não conhecem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmámos a República!' Esses indivíduos eram quatro milhões e meio de portugueses, mais de quatro quintos do país."
(Vasco Pulido Valente in "A República Velha")
Muitos democratas nos EUA talvez gostassem de excluir do direito de votar a maioria de 'analfabetos' que Donald Trump conseguiu apascentar. São pessoas "que não conhecem os confins da sua paróquia", nem estão interessadas na retórica da globalização. E, também, se podia dizer que "não têm ideias nítidas e exactas de coisa nenhuma". Desconfiam dos líderes da nação, de Walt Street e da Google. Numa palavra, não são modernas, nem 'politicamente correctas'. Fazem lembrar aquele povo dos Apalaches que persegue os domingueiros da canoagem em 'Deliverance', o filme de John Boorman. Tal como essa gente perdida das montanhas por onde passa o rio Chattooga, a nova maioria parece ter surgido do nada, tal era o ruído de fundo da América dos prodígios, da alta finança e da tecnologia.
Haverá sequer uma linguagem comum? A América da prosperidade escondia um 'deficiente' no quarto da criada. E uma personagem 'clownesca' (um Joker como o de Batman?) soube dar-lhes voz e falar a sua linguagem reprimida, por muito que os palavrões e a gesticulação malcriada escandalizem os 'afluentes', os únicos que existem para a 'indústria dos sonhos', que formata o imaginário americano.
No Portugal do princípio do século XX, os quatro quintos do país rural e analfabeto voltaram facilmente ao seu longo silêncio pária, como pretendia o chefe do partido republicano. Afonso Costa não era um democrata.
O povo americano viu-se, nestas eleições, num espelho fragmentado. As circunstâncias do 'nascimento de uma nação' trabalham o fundo do pensamento de todos. Afinal, talvez haja uma falha maior do que a de Santo André, no coração americano.
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