quarta-feira, 21 de maio de 2014

O ENVOLVENTE

Michel de Montaigne

 

"Para quem não moldou, pelo todo, a sua vida com vista a um certo fim, é impossível dispor as acções particulares. É impossível alinhar as peças, a quem não tem uma forma do todo na cabeça. Para que serve a provisão de cores a quem não faz ideia do que pintar?"

Michel de Montaigne ("Essais", Livre II)

 

Parece o bom-senso mesmo e ir ao encontro do que diz Platão: a ideia da mesa precede a execução. Mas hoje podemos ver as coisas de outra maneira. O exemplo mais à mão é o da arte. Muitos poemas começam pelo encontro de duas palavras, por um som ou uma imagem, sem qualquer ideia de como tudo vai concluir. A pintura pode cingir-se à paleta e encontrar nisso uma regra estimulante, como a rima de um verso. E a primeira cinzelada pode mudar a ideia prévia, o que se soma à 'disciplina' da própria pedra.

Então a vida de qualquer um de nós é a demonstração viva de que não sabemos por onde vamos, nem para onde ( a morte não é destino nenhum por falta do viajante). Um poema segundo a lógica não é poesia, e uma vida de acordo com um plano tão-pouco é vida.

Não é tal, porém, que obsta a que a razão e o 'bom-senso' possam defender o contrário disso. De facto, o racionalismo é 'auto-justificante', isto é, não depende dos valores.

A ideia da centralização absoluta, por exemplo, é o que há de mais racional. Daí todos os planos quinquenais para introduzir na economia mais eficiência e justiça. O resultado foi mais do que contraproducente, o que levou o líder chinês Zhao Ziyang, em 1987, a declarar que a planificação já não seria considerada "como a natureza do socialismo". ("On China", Henry Kissinger)

É que não existe uma ideia do todo na complexidade social que corresponda à realidade ( embora seja sempre preciso uma ideia qualquer ). Nem se trata aqui de alinhar as peças de um tabuleiro.


 

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