quarta-feira, 2 de abril de 2014

VALE DE LOBOS



"Tudo se ressentiu na sociedade portuguesa, com o desaparecimento desse alto poder moderador, destinado a ser o núcleo do seu governo moral. À tribuna parlamentar nunca mais tornou a subir um homem cuja voz firme, sonora e vibrante levasse até os quatro cantos do país a expressão viril das grandes convicções inflexiveis, dos altos e potentes entusiasmos ou dos profundos e implacáveis desdéns. Essa pobre tribuna deserta degradou-se sucessivamente até não ser hoje mais do que uma prateleira mal engonçada com algum lixo e o respectivo copo de água."

"As Farpas" (Ramalho Ortigão)


Ramalho lamenta aqui o abandono da política por parte do eremita de Vale de Lobos, na hora da sua morte, em 13 de Setembro de 1877, aos 67 anos.

O autor sente-se na necessidade de criar dois homens a partir desta grande figura. O homem público e o solitário 'perdido para o mundo' no "remanso estéril do diletantismo bucólico" que "comprometeu o destino mental de uma geração inteira".


Esta perda irreparável para a vida cívica portuguesa leva-os mesmo a procurar os motivos para essa inexplicável desistência, para a grande incoerência que representa: "A elaboração psicológica das causas que levaram o espirito de Herculano a quebrar as suas relações mentais com a sociedade, é um importante estudo a que se acham obrigados aqueles que viveram na intimidade e na confidencia do grande escritor. A sociedade precisa de saber que grau de responsabilidade lhe cabe no emudecimento dessa voz. Porque a isolação de Herculano não é um simples episódio biográfico, é um facto social, é um dos mais tristes fenómenos da decadência portuguesa."


O auto-afastamento de Herculano aos 46 anos de idade, depois do seu tardio casamento, presta-se a muita especulação. Hoje quase ninguém é considerado velho naquela idade, mas não seria assim num tempo em que a esperança de vida era mais baixo do que isso. Cansado de lutar sem ver os resultados, ou julgando-se com direito ao 'repouso do guerreiro' num lar finalmente encontrado, não importa. Os seus contemporâneos compreenderam a dimensão do homem. O silêncio do eremita terá porventura pesado mais do que a perseverança tribunícia no espírito da nação.


Não há hoje nenhum político abstinente, afastado sequer da televisão (talvez a mais próxima analogia com o eremitério) que possa ter um papel tão influente. Nenhum mítico Vale de Lobos que julgue o 'pane e circenses' da actualidade.


A nossa imaginação cívica foi ocupada pela imagem proliferante e sem sentido. Todos os ídolos da hora não têm só 'pés de barro'. São de barro dos pés à cabeça.


2 comentários:

LSR disse...

Cuidado, julgo que em 1877 Eça já não escrevia As Farpas. Esse excerto, porém é muito mais exaltante do que esperava de Ortigão. Ando a ler Herculano e a Geração de 70, de João Medina, e ele dedica um capítulo todo à antipatia de Ortigão por ele.

José Ames disse...

Obrigado pelo seu alerta. Como pode ver, alterei o 'post'
para ficar mais de acordo com os factos.