terça-feira, 16 de outubro de 2012

O VERMELHO E O NEGRO






"Este horror em comer com os domésticos não era natural em Julien; ele teria feito para alcançar a fortuna coisas bem mais penosas. Bebia essa repugnância das 'Confissões' de Rousseau. Era o único livro com a ajuda do qual a sua imaginação lhe apresentava o mundo. A recolha dos boletins de 'la Grande Armée' e o 'Mémorial de Sainte-Hélène' completavam o seu Corão. Far-se-ia matar por estas três obras."


"Le Rouge et le Noir"  (Stendhal)



Esta ambição quase enlouquecida, num jovem provinciano, por 'queimar etapas' na sua ascensão social tem grandes antecedentes: a Revolução e o Império que fizeram tábua rasa da ordem social e permitiram todos os sonhos.

'Morrer por um livro' só se entende porque esse livro ou a sua doutrina representam os novos horizontes da sociedade. Mas vemos que o radicalismo islâmico fez disso uma bandeira. Para esses, é o passado que abre todos os horizontes.

O caso de Rousseau vai ainda mais longe. Eis um homem que revela ao sujeito 'romântico' os seus direitos inquestionáveis e, sobretudo, a supremacia da inteligência sobre o nascimento. O que bastava para minar a ordem social que os revolucionários a seguir deitaram por terra.

Pode dizer-se que as pessoas estavam prontas para as 'Confissões'. E lembremos que, pela primeira vez, um homem confessa-se aos seus semelhantes, não como um pecador, mas para revelar o 'continente interior', para colocar a sua sensibilidade ao nível do heroísmo antigo.

A história de Julien acaba mal. Quis e quase causou a morte da antiga amante. No meio do seu grande sucesso mundano (ia casar com a outrora inacessível Mathilde, filha do marquês de la Mole, seu benfeitor), mas acabou por preferir o castigo, apesar de todos os apelos e escapatórias.

Como Sócrates, que preferiu a cicuta a fugir à justiça ou à ideia dela, Julien recusa-se a escapar e com isso, perante a 'santidade' de Madame de Rênal, é a sua ambição que julga.

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