"Este horror em comer com os domésticos não era
natural em Julien; ele teria feito para alcançar a fortuna coisas bem mais
penosas. Bebia essa repugnância das 'Confissões' de Rousseau. Era o único livro com a ajuda do qual a sua
imaginação lhe apresentava o mundo. A recolha dos boletins de 'la Grande Armée'
e o 'Mémorial de Sainte-Hélène' completavam o seu Corão. Far-se-ia matar por
estas três obras."
"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)
Esta ambição quase enlouquecida, num jovem provinciano, por
'queimar etapas' na sua ascensão social tem grandes antecedentes: a Revolução e
o Império que fizeram tábua rasa da ordem social e permitiram todos os sonhos.
'Morrer por um livro' só se entende porque esse livro ou a sua doutrina representam os
novos horizontes da sociedade. Mas vemos que o radicalismo islâmico fez disso
uma bandeira. Para esses, é o passado que abre todos os horizontes.
O caso de Rousseau vai ainda mais longe. Eis um homem que
revela ao sujeito 'romântico' os seus direitos inquestionáveis e, sobretudo, a
supremacia da inteligência sobre o nascimento. O que bastava para minar a ordem
social que os revolucionários a seguir deitaram por terra.
Pode dizer-se que as pessoas estavam prontas para as
'Confissões'. E lembremos que, pela primeira vez, um homem confessa-se aos seus
semelhantes, não como um pecador, mas para revelar o 'continente interior',
para colocar a sua sensibilidade ao nível do heroísmo antigo.
A história de Julien acaba mal. Quis e quase causou a
morte da antiga amante. No meio do seu grande sucesso mundano (ia casar com a
outrora inacessível Mathilde, filha do marquês de la Mole, seu benfeitor), mas
acabou por preferir o castigo, apesar de todos os apelos e escapatórias.
Como Sócrates, que preferiu a cicuta a fugir à justiça ou
à ideia dela, Julien recusa-se a escapar e com isso, perante a 'santidade' de
Madame de Rênal, é a sua ambição que julga.
0 comentários:
Enviar um comentário