sábado, 27 de outubro de 2012

O CORAÇÃO PENSANTE DA CASERNA




“O que é que eu faria realmente, pergunto-me, se tivesse no bolso a minha ordem de requisição para a Alemanha com a perspectiva de partida dentro duma semana? Supõe tu que esta carta chegava amanhã: que farias? Começava por não dizer nada a ninguém, retirava-me no canto mais silencioso desta casa, recolhia-me dentro de mim e chamava as minhas forças dos quatro pontos cardiais do meu corpo e da minha alma. Cortava os cabelos à 'garçonne' e deitava fora o meu 'bâton'. Tentaria, nesta semana, terminar as Cartas de Rilke(...)”

Etty Hillesum ('Une vie bouleversée')



No nº 6 da Gabriel Metsustraat, bem no centro de Amsterdam, viveu Etty Hillesum, uma jovem judia que morreu em Auschwitz, em 30 de Novembro de 1943.

Quando estive naquela praça enorme, fui ver a placa que se encontra nessa casa e espreitei pela vidraça para as íngremes escadas, donde ela corria para o amor da sua vida.

Como se afundando no negrume da noite, a sua, tal como a vida de todos os judeus na Holanda, começou a sofrer as restrições desumanas impostas pelas leis de Nuremberga. Foi a impossibilidade de utilizar a bicicleta e os transportes públicos, as farmácias e as mercearias, e por fim até os jardins (“a fim de proteger a saúde e o descanso dos arianos”).

Etty manteve até à sua detenção um diário apaixonante, onde a coragem e a alegria de viver, apesar das terríveis circunstâncias, nos fazem vibrar a cada passo. Bastava-lhe às vezes o céu que via da sua janela, o Rijksmuseum ao fundo, ou as campainhas amarelas no vaso de cristal.

“Para a maior parte das pessoas, o maior sofrimento, é a sua total falta de preparação interior; elas perecem lamentavelmente aqui mesmo antes de terem visto a sombra dum campo de concentração. Essa atitude torna a nossa derrota total. O Inferno de Dante é uma comédia ligeira em comparação.”

É também a mais perfeita e feliz aceitação do corpo (se é que se pode pensar num corpo separado), com a sensualidade que lhe é própria, as paixões e a sua miséria, que conheço. Tudo isso aliado aos mais altos voos do espírito e à fé mais ardente.

Naquela citação vemos que, na iminência da morte, pois que era nisso que acabavam as detenções, não era na morte que pensava, mas em não deixar de ler o poeta amado. Tal como Sócrates que quis aprender a tocar cítara, antes da cicuta.

1 comentários:

Anónimo disse...

Gostei imenso deste post.
Muito obrigada.

Maria Helena