segunda-feira, 10 de novembro de 2014

QUAL FOI O ERRO DE DESCARTES?

Bento Espinosa (1632/1677)

Sempre me pareceu duma grande injustiça o título da obra mais famosa de António Damâsio ("O erro de Descartes").

Agora, com "Ao encontro de Spinosa", parece que autor vem emendar a mão e reconciliar-se de algum modo com a grande filosofia, na figura dum dos autores mais influenciados pelo "Discurso do Método.

A verdade é que as "Paixões da Alma", do mesmo Descartes, não apresentam, hoje ainda, uma única ruga.

O famoso dualismo cartesiano (a que Damâsio contrapõe o monismo de Spinosa) tem sido motivo de não pequenos extravios.

Na sexta Meditação, Descartes reconhece que "não me encontro simplesmente alojado no meu corpo, tal como estaria o piloto no seu navio, mas, para além disso, estou-lhe tão estreitamente ligado e de tal modo misturado e com ele tão confundido, que constituímos como que um único todo.

É claro que o não menos famoso problema da união corpo-alma ou mente-corpo (na expressão de AD) não foi resolvido pelo que parece agora uma fantasiosa localização na glândula pineal, nem por qualquer outra explicação até hoje. Seria preciso que o espírito pudesse ser o seu próprio objecto.

A glândula pineal é assim como que um símbolo na direcção certa. Uma direcção que se revelou de uma extraordinária fecundidade científica. Porque era essencial postular que o corpo, tendo várias partes, só podia comunicar com a alma, que era simples, através dum único ponto ( a glândula foi escolhida porquanto era o único elemento do cérebro não simétrico ).

A questão levantada por AD é que nós pensamos com as nossas emoções e os nossos sentimentos, enquanto Descartes diz, no Art.4º das "Paixões da Alma": "Assim, pela razão de não podermos conceber de modo nenhum que o corpo pense, estamos justificados em acreditar que toda a espécie de pensamento em nós existente pertence à alma.

Mas é o mesmo homem que diz que as paixões, que não podemos separar do nosso pensamento, são "todo o género de percepções ou conhecimentos que se encontram em nós, porque muitas vezes não é a nossa alma que os faz tal como eles são e que ela os recebe das coisas que são por eles representadas." Logo, incluindo as que nos representam o nosso próprio corpo. É o que Damâsio chama de mapeamento de todo o corpo necessário à actividade de coordenação do cérebro. Está aqui também presente a génese das ideias que Spinosa iria mais tarde desenvolver.

Ora o reconhecimento de que sem corpo não há pensamento e de que todo o pensamento é influenciado pelas "paixões da alma" não é o mesmo que dizer que sejam uma única substância, fazendo assim da alma como que uma secreção corporal mais subtil (os "espíritos animais"?).

Falta a qualquer avaliação da alma ou da mente a consideração do que se pode chamar de espírito objectivo (ou mundo 3, de K. Popper). A língua e os monumentos do espírito não podem ser deixados de fora da equação.

Tudo, como é evidente, se pode reduzir a uma única substância, se for suficientemente profunda. Mas a matéria ou o objecto da neurofisiologia não o são.

O indivíduo e a sociedade não se compreendem um sem o outro. E não me repugna conceber no corpo uma espécie de "interface" natural.

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