sábado, 22 de novembro de 2014

O CIÚME DE DEUS

"Amadeus" (1984 - Milos Forman)

Claro que nunca saberemos como era o riso de Wolfgang. É matéria de recriação. Mas sabemos que uma "nuance" pode decidir da nossa adesão à personagem.

Há momentos, no filme de Forman, em que nos parece que o lado histriónico e infantil do biografado é acentuado pelo gosto do paradoxo. Apenas por que está em flagrante contraste com a seriedade e a maturidade da música.

Na primeira visão, desagradaram-me muito mais as facécias e as gargalhadas obscenas de Tom Hulce do que o delírio anti-Salieriano do autor da peça (Peter Schaffer).

Revendo a fita, nada disso me parece ter importância.

A hipótese dum ser irresponsável, fora do mundo da música, ser o miraculado destinatário da graça divina (como na cena em que Mozart, ao mesmo tempo que vai escrevendo na pauta, joga com uma bola de bilhar, escrevendo, sem rasuras, o que lhe é ditado por Deus) e desse favoritismo fazer nascer um ciúme de morte no compositor da corte vienense, Antonio Salieri, ciúme que coabita com a mais ardente das admirações é, pelo menos, psicologicamente verdadeira.

De resto, o lugar de onde fala Salieri, o manicómio, iliba a história de qualquer outra pretensão.

Talvez nem Salieri delirasse assim, nem Mozart fosse um escritor de música tão displicente. Mas que importa? É cinema, e do melhor cinema.

A minha cena preferida é aquele "raccord" do rosto enfurecido da sogra, da inspiração no olhar de Mozart, que passam para a ária fulgurante da Rainha da Noite.

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