"Sem tradição, o artista tem a ilusão de criar a sua própria regra. Ei-lo Deus."
"Cahiers III" (Albert Camus)
O momento Cézanne. Parece que ele virou as costas à tradição, a partir de uma certa altura, para, como dizia Proust, nos colocar uns óculos novos (que continuam a servir).
Mas a depuração do Monte de Sainte Victoire, paisagem repetida uma e outra vez até se tornar 'apenas' uma explicação da luz, não terá nada a ver com a pintura dos séculos anteriores?
Não é preciso recuar ao aforismo de Leonardo que dizia ser a pintura 'cosa mentale'. Ele sabia que a captação da imagem de um ser vivo era utópica (será isso que quer dizer a ironia da Gioconda?). O retrato fica numa outra ilha de Lotófagos, onde se aprende a esquecer a vida, enquanto o seu modelo se deteriora inexoravelmente, como Dorian Gray.
Mas talvez não seja essa utopia o essencial. O classicismo, por exemplo, representa-se a si mesmo, embora servindo-se das 'lentes' da época para a figuração do mundo.
Cézanne é um dos primeiros a utilizar a perspectiva histórica da pintura para a tornar independente do mundo, como nossa segunda natureza. A pintura rompe com o cânone da continuidade para ser tradicional dum modo paradoxal. Conquista a sua nova liberdade, à custa de nos separar do mundo. Cézanne traz Kant para a pintura.
O efeito mais surpreendente disto talvez seja o que muitos consideram 'o fim da pintura'. Tendo-se perdido com a reprodução ou a interpretação do mundo uma espécie de ética (já não podemos dizer hoje que uma pintura é mais verdadeira do que outra), entrou-se na era do jogo arbitrário e no beco-sem-saída da 'expressão' pessoal.
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