domingo, 2 de novembro de 2014

ACRÓPOLE

 

"Lá em cima é outra coisa. Sobre os templos e sobre a pedra do solo que o vento parece ter também decapado até ao osso, a luz das onze horas cai em cheio, ressalta, quebra-se em mil espadas brancas e ardentes. A luz escava os olhos, fá-los chorar, entra no corpo com uma rapidez dolorosa, esvazia-o, abre-o para uma espécie de violação, física apenas, limpa-o ao mesmo tempo."

"Carnets III" (Albert Camus)

 

Antes de subir a escadaria com a Acrópole lá no alto, sente que tudo é já conhecido, que visita o lugar como um 'vizinho', sem emoção. É a luz que parece entranhar nele a experiência perdida do sagrado. Só depois, a audácia daquela arquitectura surpreende a sua inteligência. Felizes onze horas de há meio-século já!

O primeiro pensamento que me ocorre é como a vida que levamos nos 'protege' de experiências como essa e, sobretudo, em monumentos tão procurados pela ânsia de 'ter lá estado' e de registar o momento em fotografia ou vídeo.

Parece que não 'precisamos' de uma emoção como a que Camus sentiu. Não precisamos sequer da hipótese, tal como o astrónomo que respondeu a Napoleão que lhe perguntara se Deus fazia parte da sua relojoaria celeste: "Sire, não tive necessidade dessa hipótese."

O passado desaparece debaixo do aluvião humano, ou é incessantemente reescrito à luz de piedosas incompreensões.

As cheias do Tibre cobriram como um manto de esquecimento as ruínas da capital do império romano. Napoleão, com a sua grande visão, começou o trabalho de desocultamento/ocultamento. Estava ali, debaixo de terra, a prova de um império à sua altura...

 

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