quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A GEOMETRIA



"Não  podemos  considerar  uma  curiosidade  histórica  o  facto  trágico  e  fatal  de que,  nas  datas  em  que  se  anuncia  a  morte  de  Deus,  o  mundo  objectivo  baixa  as defesas,  retira  os  seus  obstáculos,  alivia  a  cruel  e  velha  Necessidade,  começa  a perder  as  suas  batalhas  perante  as  nossas  técnicas  agressivas  e  triunfantes, retira-se,  humilhado,  para  trás  das  nossas  representações,  em  resumo,  entra  em agonia.  A  bomba  troveja  a  morte  do  mundo,  apenas  meio  século  depois  da  morte de  Deus.  As  duas  transcendências  abandonam  o  mesmo  lugar  mais  ou  menos  ao mesmo  tempo.  Eis-nos  obrigados  a escrever  uma  filosofia  da  agonia da objectividade transcental  e do seu renascimento, hoje em dia."
(Michel Serres)

A ideia de um mundo objectivo 'à defesa', guardado pelo dragão da Necessidade, correlato do demiurgo supremo, insondável e imprevisível nos seus desígnios, dispensador do sentido da vida, parece, afinal, bastante lógica.

Por isso se dá um volte-face panteísta, quando Deus sai de cena. Ainda o filósofo: "O objecto  natural  toma  o  lugar  de  Deus;  pode  mesmo  coexistir  com  ele  no mesmo  lugar,  sendo  apenas  essencial  que  compreenda  bem  esse  lugar,  uma  das metamorfoses  do  qual  será  essa  caixa  branca,  fonte  de  um  discurso  interminável e, portanto, de um longo tempo da história, o espaço puro da geometria."

A 'caixa branca' não contém a memória do acontecimento, como a 'caixa negra' dos aviões. No fundo, dir-se-ia antes o invólucro do mundo platónico das ideias, onde elas não chegariam a ter uma actualidade ideal, mas 'decorreriam' directamente do 'lugar de Deus'.

Por outras palavras, tivemos de passar por Deus para sermos geómatras.

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