segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Franz Kafka


"Kafka sabia (temos o seu testemunho relativamente a esta percepção) que tornara uma letra do alfabeto romano só sua."
George Steiner

Nenhuma obra foi tão carregada de premonição, como a de Kafka. Assim, erguendo-se como um pórtico à entrada do século XX, não podia deixar de atingir com a sua sombra o sentido da tragédia que se seguiu. Houve outras ditaduras e outros regimes inumanos como os de Hitler e Staline. Mas estes estavam crismados pelo absurdo e pelo autofagismo burocrático, antes de serem de facto.

O paradoxo da civilização que engendra a barbárie mais monstruosa tinha o seu enquadramento na 'imaginação' de Kafka. Ao nomear a sua personagem principal (no 'Processo' e no 'Castelo') com o apelido K, a sua própria inicial, o escritor checo criou um símbolo de grande eficácia literária e política para designar a sociedade que acabara de perder Deus e que, num inesperado ricochete, estava em vias de perder a Razão, como a loucura de Nietzsche parecia significar. Não tem um conteúdo, é um 'molde' para 'compreender' a época. O texto de Kafka assemelha-se aos óculos de que fala Proust. O oculista pergunta-nos se, com eles postos, vemos melhor. E sim, tudo parece mais nítido. A sociedade 'totalitária', tendo ingerido a justiça e a tradição, dá grandes arrotos de não-sentido. Coube ao mais inverosímil dos heróis mostrar o absurdo.

A Justiça, no 'Processo', não é um ideal. É uma 'montagem' para manter o sistema da culpa. O 'acusado' K. morrerá "como um cão", sem conseguir saber qual é o seu crime. Mas isso é a ponta de um 'iceberg' chamado cumplicidade. E é o que  nos leva, passados 70 anos sobre os 'campos', a recusar a ideia do monstro nascido de um parto asséptico, anti-mefistofélico, em que, como Pilatos, não tivéssemos ensanguentado as mãos.

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