quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A PELE HUMANA


Karl Kraus

"Kraus afirmaria em 1909, em termos ao tempo inteiramente fantásticos (e hoje insuportáveis), que o progresso do tipo científico-tecnológico faria 'carteiras de pele humana'"

(George Steiner) 

Primeiro, conhecemos o reino da mercadoria, onde tudo encontra equivalência e onde tudo se troca. Num tempo em que isso ainda poderia chocar, o vate inglês foi ao ponto de pôr o judeu Shylock a tirar as últimas consequências dessa equivalência geral, reclamando de um mercador falido a libra de carne 'correspondente' à sua dívida. A carne humana não lhe serviria para nada, mas valia o peso do seu ódio racial. Ninguém se lembrou de trazer à barra o anti-semitismo de Shakespeare, mas a histórica filiação bancária da diáspora ainda podia justificá-lo. Apesar de tudo, o domínio do 'sagrado' conseguia limitar a monetarização geral.

Como o estuque do barroco enquanto 'forma universal' (Baudrillard) que antecipava o plástico dos nossos dias, a busca de uma linguagem das coisas acompanhou o 'passo de ganso' da mercadoria. E, como se houvesse predestinação, ou um plano secreto dos deuses, todos esses esforços culminaram num desenvolvimento do sector científico-tecnológico sem precedentes. O advento do digital estilhaçou de vez a nossa representação do mundo como um todo, como 'criação' do sentido.

De uma forma mais radical do que o capitalismo e do que o dinheiro, o digital está em vias de se tornar 'o' equivalente geral, uma economia e uma epistemologia, acima da divisão entre um sagrado que se retrai como a 'pele de asno' e um profano que seria o oposto do sagrado.

A profecia de Karl Kraus anuncia essa 'evacuação' do homem no novo cenário. Como a 'libra de carne' de Shylock designa-nos um lugar fora da terra, donde nos pudéssemos observar com toda a 'objectividade'.



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