segunda-feira, 10 de março de 2014

MORTAL

Elias Canetti

 

"O momento em que um ser humano sobrevive a outro é um momento 'concreto', e eu acredito que a experiência deste momento tem consequências muito graves. Penso que esta experiência está coberta pelas convenções, por aquilo que cada um 'deveria' estar a sentir quando tem a experiência da morte de outro ser humano, mas que por detrás disso se esconde o sentimento de uma certa satisfação, e deste sentimento de satisfação, que pode ser de triunfo - como no caso de um combate - algo de muito perigoso pode surgir, se acontece com mais frequência e se acumula. Esta experiência perigosamente acumulada da morte de outro ser humano é, creio eu, um germe essencial do poder."

Elias Canetti (numa discussão radiofónica com Theodor Adorno, em 1962)

A palavra concreto, entre aspas, neste caso, é muito significativa. Como se devêssemos distinguir no tempo (na 'durée' bergsoniana), para além dos momentos 'fortes' e dos momentos 'fracos', que ficam mais ou menos gravados na nossa memória, uma outra experiência, possivelmente independente da consciência e da memória, mas que nos transforma profundamente. A 'acumulação' de que fala Canetti é sem dúvida importante na maior parte dessas mutações (de carácter?). Mas sabemos também que a metamorfose pode ser súbita, como se todas as 'forças' se concentrassem num ponto.

Esta ideia do poder implica, evidentemente, uma origem que é independente da política. Podíamos dizer até, parafraseando a 'blague' de Lacan a propósito do amor (de que não há relação), que o poder é sempre uma relação 'mortal'.

 

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