"O escravo moribundo" |
"Mal tenho tempo de comer...não tenho tempo para comer...Há mais de doze anos que arruino o meu corpo com as fadigas, falta-me o necessário...não tenho um cêntimo, estou nu, sofro mil penas...Vivo na miséria e nas penas...luto com a miséria..."
(Carta de Miguel Ângelo Buonarroti)
"Esta miséria era imaginária. Miguel Ângelo era rico; ele fez-se rico, muito rico. Mas de que é que lhe servia isso? Vivia como um pobre, agarrado à sua tarefa, como um cavalo à sua mó. Ninguém podia compreender que se torturasse assim."
(Romain Rolland)
Segundo Rolland, este herói que se inflige a própria tortura é tipicamente cristão. O seu sofrimento não tem expiação possível. E um dia, "aqueles que virão hão-de debruçar-se sobre o abismo desta raça desaparecida, como Dante na margem do lago de Malebolge, num misto de admiração, de horror e de piedade."
Somos nós já essa geração que se debruça sobre o Malebolge? Porque não reconhecemos à nossa volta estes seres torturados. O que vemos de mais aproximado são aqueles a quem atribuímos um epíteto sexual: os masoquistas. E num ápice, desfez-se em matéria analítica o mistério destas almas inquietas. Os contemporâneos do grande Buonarroti não compreendiam a sua total incapacidade de gozar a riqueza que tinha (depois da sua morte, foram encontrados na sua casa de Roma 7 a 8000 ducados de oiro; Vasari diz que, além disso, tinha seis casas e terras em Florença, Settignano, Rovezzano, Stradello, San Stefano de Pozzolatico, etc.).
O nosso século progressivo põe hoje ao alcance da nossa compreensão o fenómeno da auto-punição e do sofrimento voluntário: Trata-se, no fundo, de prazer, um prazer paradoxal, sem dúvida, mas sempre motivado pelo horizonte individual de que nos orgulhamos.
Talvez seja por isso que nunca mais surgiu na nossa civilização um artista como Miguel Ângelo.
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