sábado, 29 de março de 2014

A LEITURA

Adriano


A leitura de Yourcenar envolve-me como um palácio de arquitectura inteligível. Identifico-me ao seu Adriano, e enquanto habito as suas memórias, a vida tem outro sentido. É isso que procuramos nas obras do espírito, não é verdade? Nelas achamos a harmonia da abóbada celeste, e as nossas paixões reduzem-se a um vago rumor, logo compreendido na grande sinfonia.


Mas – reparo agora que, pela primeira vez no texto, com esta conjunção me ponho a subir a encosta da positividade – deve haver algo que substitua na consciência feliz da maioria essa qualidade da leitura. A razão não pode só por si aspirar a esse papel: o passado não se deixa iluminar como uma avenida. Quase todos os homens vivem nesse estado de graça que os leva a nunca sentirem a necessidade de interrogar o sentido das suas vidas. E nenhum racionalismo pode competir com esse dom. Primeiro a força, depois o sentido e a forma. O corpo recusa-se e o espírito não é, sem remédio. O que dá todo o valor à religião incarnada. Ao culto do inferior, como um deus menor e incompreensível à mente geométrica.

O sujeito que encontra a questão do sentido é uma cabeça que ressoa. Segundo grau da consciência da fala que problematiza ao nível metafísico toda a interrupção de energia. Um texto literário é uma pilha eléctrica capaz de galvanizar um “cadáver”. Donde é que lhe vem esse poder senão da sua articulação e complexidade? Da sua capacidade de simular a vida do espírito?

Talvez a inspiração seja uma espécie de lamiré. Uma mudança de tecla que faz passar a ordem da realidade à ordem do signo. Quem leio escreve comigo. E a percepção de agir por um momento é suficiente para abolir a tristeza e mudar a posição do corpo.

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