quinta-feira, 5 de julho de 2012

O LIBERTINO CONSCIENCIOSO


"Não vou aborrecer os meus leitores com um relato da nossa entrevista, uma vez que se compunha dos voos de louca fantasia de Madame d'Urfé e de mentiras da minha parte, que nem sequer tinham o mérito da probabilidade. Escravo da minha vida de feliz libertinagem, aproveitei-me da sua loucura; ela teria encontrado outra pessoa para a enganar, se eu não o tivesse feito, porque era realmente  ela que se enganava a si própria."

"Memórias de Casanova, Livro 5"


O nosso Giaccomo convence Madame d'Urfé, imensamente rica, que a altura é favorável para regenerar a velha carcaça, graças à força genesíaca do próprio e a certas artes ocultas, embora deva morrer do parto (mas com a migração do seu espírito para o novo ser). Madame d'Urfé só perde a fé em Casanova, quando, apesar de tudo, não consegue engravidar. Giaccomo tem de fugir para Londres.

Casanova procura justificar-se nas memórias. Levou a vida que quis levar e passou-a a escrito, por lhe parecer extraordinária, mas, sem dúvida, sobretudo, para, de algum modo a "reviver", quando lhe faltaram os meios de a continuar na prática. Imaginamos, facilmente, as delícias que essa tarefa para a posteridade trouxe ao velho bibliotecário do Conde de Waldstein.

A escrita permitir-lhe-á, segundo o testemunho do Príncipe de Ligne, transformar a sua vida em "filosofia". Com efeito, as suas últimas palavras teriam sido: "vivi como um filósofo e morro como um cristão".

O método dessa conversão retrospectiva é o que está exemplificado na passagem citada. Madame d'Urfé só pedia para ser enganada. O Libertino, ao mesmo tempo que se serve da bolsa da sua discípula em magia, não faz outra coisa do que a ajudar a viver a vida que ela escolheu.

A filosofia de Casanova, cavaleiro de Seingalt, não é intelectual, nem nada complicada. É uma arte de viver e, mais tarde, de produzir escrita. O prazer que nos dá a leitura das "Memórias" não nos permite a injustiça de as considerar como as aventuras dum escroque.

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