"É uma mãe que tem demasiados filhos e daí que não possa dedicar-se a ti, não te peça nada, não espere nada. Acolhe-te quando vens, deixa-te andar quando vais, como no tribunal de Kafka. Nisto há uma sabedoria antiquíssima, africana quase, pré-histórica. Sabemos que Roma é uma cidade carregada de História, mas a sua sugestão está de facto num quê de pré-histórico, de primordial, que aparece em certas perspectivas ilimitadas e desoladas, em certas ruínas que parecem vestígios fósseis, ossos, como de esqueletos de mamute."
(F. FELLINI, Fare un film, Torino, Einaudi, 1980)
Com ideias e imagens visionárias como estas, Fellini, que gostava de se definir como um grande 'bugiardo' (mentiroso) deu-nos a obra-prima que é "Roma". Outras ideias e visões e uma subjectividade mais 'solar', ou 'apolínea', proporcionariam, talvez, perspectivas mais próximas do 'bom senso', seja isso lá o que for.
Há uma cena no filme que parece provocatória para um italiano, tão desrespeitosa se mostra para essa mãe, acima das outras, que é a Santa Madre Igreja. E que a mensagem assim foi ententida prova-o o facto de uma pequena parte (quase 'por cerimónia', podíamos arriscar) ter sido censurada.
A cena é o de uma passagem de moda de clérigos e freiras, no palácio de uma velha devota, e uma parte cortada (mas não estou certo de ter sido a única) foi a do final do desfile em que aparece o carros dos esqueletos. Está na tradição católica que o macabro seja a melhor tradução da 'vaidade das vaidades'.
Ora, essa cena não pretende ser uma crítica de costumes ou a denúncia de um mundo fechado voltado para os seus fantasmas, para quem a única mudança imaginável seria...de traje.
Não, o Fellini que conhecemos e o que a nós se confessa não seria capaz de atravessar esse campo minado. O que é mais provável é que o desfile eclesiástico que aparece em "Roma" seja uma daquelas quimeras que a ideia professada pelo cineasta de uma Mãe pré-histórica e, no fundo, indiferente à numerosa prole, inspirasse. Talvez a Igreja de Fellini seja também essa Mãe, que não podendo, de facto, preocupar-se com os seus filhos 'faz paciências' (ou inverosímeis pasagens de moda).
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