"(...) como quando Roxanne impunha a Christian (e,
através dele, a Cyrano) desafios do tipo 'falai-me do amor'".
(Umberto Eco)
Christian é belo, mas não sabe falar do amor (ou de
qualquer outra coisa). É Cyrano, com o rosto marcado pela fealdade, que possui
o dom da palavra, como se em compensação.
O que pede a bela ao amante que não sabe falar dir-se-ia
supérfluo: eles parecem ter tudo para se amarem.
Mas Roxanne é uma daquelas mulheres a quem Molière
chamava de 'preciosas'. A linguagem é o que, aos seus olhos, faz aparecer o
amor. E não é uma espécie do amor o que se alimenta da poesia do amor?
A verdade é que só ama as palavras do outro, do que se
esconde, do ventríloquo 'au long nez'.
A perfeição que Roxanne exige de Christian encerra-o num
'ménage à trois' impossível. Julgando que a amada sabe que é outro que o
inspira, procura a morte em combate.
Mas Cyrano não se revela, por fidelidade ao amigo morto. É
só quinze anos depois, ele próprio moribundo, que Roxanne tudo adivinha e lhe
declara o seu amor.
A peça, nesta reviravolta final, deixa-nos com um
fantasma nos braços. Pode Roxanne ser sincera naquela declaração, depois de ter
idolatrado Christian e com o desaparecimento deste ter renunciado ao
"mundo"?
Poderão as palavras do amor e a sua poesia viver
por si próprias, a ponto de sobreviverem às pessoas e ao equívoco mantido
durante tantos anos em relação a elas?
E de que desafio fala Eco? Falar do amor (em vez de
amar), como se o 'discurso amoroso' (Barthes) fosse a própria natureza deste
amor que não é todo o amor. Como se a sedução estivesse na origem de tudo...
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