"Mas com o tempo, o seu deus adquiriu uma verdadeira
mania legislativa e na actualidade o corpo jurídico constitui um imbróglio tão
inextricável e minucioso que é impossível não incorrer em falta
continuamente."
("A assombrosa viagem de Pomponio Flato" de
Eduardo Mendoza)
Cada malha acrescentada à rede nos tolhe mais os
movimentos porque a ideia de tudo regular cria um mundo artificialmente
fechado, em nome da segurança (ou dum saber de previsão).
Kafka foi o profeta desse mundo. A personagem de K, no
"Processo" está à partida condenada pelo labirinto das leis. Nas mãos
dos 'intérpretes', de advogados como Hastler, resta-lhe seguir as práticas
consagradas e os conselhos dessa burocracia para para obter o adiamento da pena,
na esperança vã dum 'esclarecimento'.
A sociedade descrita no romance foi devorada pelo poder. A inextricabilidade
legal que justifica a existência duma casta de intérpretes autorizados define um sistema de
poder aparentado à teocracia do Antigo Egipto, sendo os sacerdotes os guardiãos
(e beneficiários, em termos de poder) da doutrina esotérica.
O verdadeiro poder não se funda numa função ( a da
segurança, por exemplo), mas num alegado saber que só a especialização (nas
coisas de Céu, por exemplo) e a consagração permitem alcançar.
Mesmo o mais poderoso dos 'caudillos' invoca Deus e a sua
missão.
É claro que nos tempos que correm a parábola que merecia
um novo Kafka não trataria de advogados, mas de economistas, que são os
herdeiros, longínquos embora, do esoterismo egípcio.
0 comentários:
Enviar um comentário