"- Cala-te, amigo Sancho - respondeu Dom Quixote - que as coisas da guerra estão sujeitas mais do que as outras a contínua mudança: tanto mais, como eu penso, e é verdade, que aquele sábio Frestón que me roubou o aposento e os livros transformou estes gigantes em moinhos, para me tirar a glória de vencê-los: tal é a inimizade que me tem; mas ao fim e ao cabo hão-de poder pouco as suas artes maléficas contra a bondade da minha espada."
Dom Quixote (Miguel Cervantes)
A prodigiosa actualidade do "Don Quijote", da ideia transfiguradora do real que percorre as suas páginas, ultrapassa a própria literatura.
O que sentimos ao ler as peripécias da loucura do cavaleiro andante não é a crítica de costumes ou literária, a retórica do século XVI ou os maneirismos da língua, é a falta de consistência daquilo a que chamamos a realidade. Como se o discurso demente tivesse poder igual ao da razão para se impor aos outros e de moldar a sua vida (nem que fosse através de estratégias de dissimulação e de tácticas de "entrar no jogo" da loucura para obter certos fins ou desviar de certas consequências).
Nem o encerramento preserva dessa influência, porque também a razão se encerra numa polícia do espírito e na castração.
Assistido pela química, o moderno conceito de psicose e de interpretação delirante, que são, muitas vezes, efeito colateral dum fármaco, permite-nos derrubar os muros e, como por encantamento, destruir a biblioteca do fidalgo, no aposento e na sua cabeça.
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