(Homero) |
FL-"(...) A Ilíada é um poema que me interpela, que tem qualquer coisa mais profunda.
P - É chamado “poema da cólera”.
FL-Não só. É o poema do sofrimento humano e é o poema do entendimento do sofrimento como estado normal do ser humano. É um erro fundamental as pessoas pensarem que têm direito de ser felizes.
P - Como assim?
FL-O normal é estarem a sofrer, em situações que são desafiantes, injustas, doridas. Isso é o que distingue a vida da morte. Depois o sofrimento pára, isso significa que se morreu. Estar vivo e sofrer são duas coisas indissociáveis e a Ilíada tenta fazer sentido disso. Tenta mostrar-nos como é que conseguimos tirar partido dessa coisa tão inelutável que é estar permanentemente a sofrer."
(Entrevista a Frederico Lourenço de Anabela Mota Ribeiro, no 'Público' de 17/8/14)
Simone Weil, legou-nos a sua enorme admiração pela civilização grega e pela 'Ilíada' em particular. Chamava a esta obra de Homero 'o poema da força'. Partia da antiga ideia de Necessidade que hoje se perdeu ou se encontra camuflada sob muitos nomes. Talvez seja 'o' tabu essencial, como a nossa ideia da morte nos deixa perceber.
Frederico Lourenço, que traduziu Homero do original, prefere a designar a 'Ilíada' como 'o poema da cólera' (de Aquiles), conotá-la com o sofrimento humano.
A 'Necessidade' impõe-se aos próprios deuses na cultura grega, expondo, assim, uma espécie de fraternidade com o género humano. Apesar de 'imortais' e todo-poderosos sobre os homens, os habitantes do Olimpo obedecem a uma lei superior. Esta condição parece já anunciar a grande síntese do monoteísmo.
Mas os olímpicos não sofrem como os humanos, graças a uma divina disposição para o esquecimento a que podíamos chamar, sem intenção blasfematória, de Alzheimer feliz. O mito dos lotófagos, por outro lado, fala-nos disso como de uma peculiaridade de insulares.
O certo é que a 'força' no sentido weiliano transcende em muito a física. Podíamos, hoje, ver no desenvolvimento tecnológico que transforma o mundo de uma forma mais radical do que a utopia marxista sequer sonhou, como uma manifestação exemplar. Aparentemente somos nós os inventores, contudo os efeitos dessa acção sobre o nosso mundo, são apenas vislumbrados, senão são o nosso 'ponto cego'. Chegaremos ao ponto de 'criarmos' os seres, ou as próteses, que nos vão substituir, como nos mostra a série 'Humans'?
A menos que se veja no nosso destino uma luta do espírito contra a força (ou contra a Necessidade), o sofrimento humano talvez não seja tão essencial quanto isso; não seria mais que uma singularidade histórica, herdeira do judeo-cristianismo.
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