terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A TRAIÇÃO DO POETA

À volta da mesa, por Henri Fantin-Latour, 1872,
Rimbaud é o segundo à esquerda, tendo ao seu lado direito 
Paul Verlaine


"O silêncio de Rimbaud não é para ele uma nova maneira de se revoltar. Pelo menos, não podemos mais afirmá-lo desde a publicação das cartas de Harrar. (...) A Abissínia seria, ao menos, um convento, foi o Cristo quem calou a boca de Rimbaud? Esse Cristo seria então aquele que se pavoneia actualmente nos guichés dos bancos, a julgar pelas cartas em que o poeta maldito só fala no seu dinheiro, que deseja ver 'bem aplicado' e 'rendendo dividendos regulares'. Aquele que exultava nos suplícios, que havia ofendido Deus e a beleza, que se armava contra a justiça e a esperança, que se fortalecia no duro ambiente do crime, quer apenas casar-se com alguém que 'tenha futuro'. O mago, o vidente, o prisioneiro intratável, sobre o qual a prisão sempre volta a fechar-se, o homem-rei da terra sem deuses, nunca deixa de carregar oito quilos de ouro num cinto que lhe pesa no ventre e do qual se queixa, dizendo que provoca diarreia. Será esse o herói mítico que se propõe a tantos jovens, que não cospem no mundo, mas que morreriam de vergonha à simples ideia daquele cinto? Para sustentar o mito, é preciso ignorar essas cartas decisivas."

"L'Homme Révolté" (Albert Camus)

Conhece-se a história do poeta das 'Iluminações' e de 'Uma Estação no Inferno', escritas quando era ainda adolescente. Depois de uma tempestuosa ruptura amorosa com Verlaine, inicia uma viagem pelo mundo, onde faz comércio e tráfico de ouro e de armas. Morre aos 37 anos na sequência de um cancro, sem ter escrito um único verso, uma única linha que recordasse ao mundo o grande poeta que foi.

Camus diz que o poeta traíu o seu génio e que há um mistério nessa sua transformação. O génio juvenil viveu a sua vida adulta como um canalha, como se até alí fosse uma espécie de ventríloquo dos deuses. A voz encantada atravessou o seu ser, sem deixar vestígios. É um dos raros casos de possessão poética. De uma explosão criadora que dispõe por inteiro do seu médium para cumprir uma entrega de origem quase divina e que abandona o corpo como uma alma viajante no fim da sua tarefa.

Esse corpo esgotado, com os sonhos roubados pelo êxtase poético, antes mesmo de afirmar uma personalidade, vagueia, como um fantasma por Java, Aden e Harrar, abandonado pelos deuses e pelo seu  próprio passado.

É estranho que um caso destes  não tenha conseguido iluminar-nos e seja ainda classificado como uma traição.

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