(Samuel Beckett) |
"Mas fosse-me concedido tempo para realizar a minha obra, não deixaria de estampá-la com o selo daquele Tempo, agora tão vivo em minha mente; e nela descreveria os homens, mesmo sob risco de atribuir-Ihes com isto uma aparência monstruosa, ocupando no Tempo um lugar bem maior do que aquele tão parcamente concedido a eles no Espaço, um lugar, em verdade, prolongado sem medida, pois, como gigantes mergulhados nos anos, tocam eles, a uma só vez, aqueles períodos de suas vidas separados por tantos dias - tão distanciados no Tempo".
(Marcel Proust, citado por Samuel Beckett)
Se pudéssemos, realmente, vermo-nos uns aos outros naquela dimensão do tempo que nos apresentasse em todas as idades que se escaparam para a perspectiva unidimensional prisioneira do espaço, teríamos o aspecto de monstros, os monstros que a guilhotina do definitivo, do 'actual' poupa à nossa sanidade mental.
Segundo parece, Proust concebeu esta ideia ao escrever o seu romance a partir do fim. De facto, o encontro do narrador com as suas personagens, anos volvidos sobre a vida dessas figuras de salão no novelo dos dias, é o detonador da escrita. Resulta do espanto que nele provocam as personagens transformadas pelo tempo. A metamorfose mais significativa é, talvez, a de Oriane, a duquesa de Guermantes, que aparece substituída na sua versão burguesa pela 'patroa' Verdurin. O poder dissolvente, desestruturante, do dinheiro atinge aí a sua essência corruptora.
Esse espanto é motivado pelo que não se vê, porque o que Marcel tem diante dos olhos, nas últimas cenas, é uma caricatura daquilo que foi. Sem a reconquista pela memória do tempo passado, essas máscaras não têm espessura, são a 'ponta do iceberg' dum mundo monstruoso que é o do tempo enrolado e reenrolado na simultaneidade do espaço.
A obra surge, assim, como a única possibilidade de 'actualizar' o passado submerso no falso instantâneo do real.
É isso que dá todo o sentido à obra e que faz toda a novidade da aventura proustiana.
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