sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O IMPÉRIO ACHADO




"Tenho ternura, ternura até pelas lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar - ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas." 

"O Livro do Desassossego"

Um franciscano no escritório que abrange no mesmo olhar embaciado as coisas pequenas e as grandes? O tinteiro e as costas dobradas do Sérgio, tanto quanto o céu nocturno recamado de estrelas.

E, no entanto, sabemos que esta equanimidade é infeliz. Porque, por debaixo desta conformação desconsolada, faz-se ouvir um coração frustrado na sua vocação amatória. É a confissão de um 'à falta de melhor'.

O heterónimo do 'Desassossego' é como que o contrapeso do voluntarismo modernista de outras máscaras, de um cepticismo militante. Para não cair na facilidade de associar esse contrapeso à 'alma portuguesa', a tal que 'só faz bem torres de Belém', como se os homens e as nações se 'medissem aos palmos, é preferível ver em Bernardo Soares uma espécie de génio morboso que não é especialidade nacional, mas personagem de todas as paragens, uma espécie de Dom Quixote às avessas, que em vez de tresloucado pelos romances de cavalaria o tivesse sido pela fábula de um império que nunca foi nosso.

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