"Odeio aqueles que dizem obscuramente coisas claras. Odeio aqueles que dizem claramente coisas obscuras. E são os mesmos."
(Alain)
Hannah Arendt esclarece, no documentário que passou entre nós, nalgumas salas de cinema, o sentido da expressão que agora passou a cliché de 'banalidade do mal'.
Essas palavras, no contexto do julgamento de Eichmann, em Israel, referem-se ao carácter insidioso de uma metamorfose que não nos desperta em nenhum momento para o vácuo, fora da realidade, em que vivemos. É quase sempre uma 'atmosfera' colectiva que nos habitua, sem dramas, a viver sem precisar de pensar. Talvez todos nos comportássemos, nas mesmas circunstâncias, como aquele burocrata nazi. Não podemos dizê-lo. Com efeito, dizer que em todos existe essa potencialidade de destruir o ser humano, essa raiz de um inominável que escapa ao sistema da culpa e da punição, é retirar-nos a capacidade de julgar, ou sequer de identificar a causa ou as causas do genocídio. No entanto, essa incapacidade é coisa a que não é estranha a afirmação socrática de que 'ninguém é mau voluntariamente'.
O que o julgamento mostrou, aos olhos de HA, foi a inverosimilhança chocante de tentar diabolizar um humúnculo cheio de tiques e desnorteado por uma culpa esmagadora que é incapaz de compreender. E HA releva aqui o ponto essencial: o burocrata carreirista da Gestapo não era capaz de pensar, nem de 'parar para pensar'. Todos os seus actos manifestam a mesma percepção da realidade que teria, por exemplo, um viciado em drogas duras. O contexto que explica esse isolamento da realidade toma conta de todas as personagens do regime, depois de, por um lapso de tempo, ter absorvido as energias da nação, a sua cultura e a tradição do seu pensamento.
A banalidade está toda na superficialidade de um quotidiano sem contacto com a realidade. É esse o ambiente do mal arendtiano. Eichmann, nessa espécie de julgamento foi o 'bode expiatório'. Por muito que custe aos herdeiros das vítimas e que nos custe a todos, por assim ficar exposta a natureza perfunctória do sistema judiciário (farsa é a palavra que não se pode pronunciar), o que esteve em causa naquele tribunal mediatizado para convencer o mundo de que se tinha encontrado o fio condutor da verdade e consagrado o povo judaico no seu papel sacrificial (o futuro iria demonstrar de que maneira o sionismo foi capaz de replicar a violência sobre um outro tipo de vítimas, sempre invocando as necessidades de segurança do novo estado) ia muito para além de todas as encenações e de toda a compreensão por via da psicologia ou da sociologia, dos exemplos do passado ou do presente. Talvez só a filosofia pudesse tentar compreender. Foi o que Hannah Arendt fez para incompreensão geral e fúria do seu próprio povo.
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