Haveria uma forma elíptica, digamos, de sentirmos (mais
do que vermos) a experiência-limite que é o tema de "O cavalo de Turim"
de Bélla Tarr?
O filme, por isso, dura 146 penosos minutos em que,
realmente, nada acontece (para além da visita dum 'fantasma nitzscheano', na
definição do próprio Tarr e da passagem dos ciganos (povo perseguido que agora
se sente quase à vontade na perseguição dos elementos).
Podemos pensar que o pai (que tem o braço direito
paralisado e às vezes nos faz lembrar o Moisés de Miguel Ângelo) veio com a
filha, através dos campos, directamente da segunda
cena de rua mais célebre da filosofia. Depois do buraco em que Tales caiu
quando olhava as estrelas, provocando o riso da criada trácia, o soçobro da
razão do autor do 'Zaratustra', abraçado ao cavalo que o cocheiro ameaçava
chicotear, é o outro momento em que o espírito 'terreno' ( e feminino, não houvesse
uma mulher do povo na primeira história) parece pôr em xeque todos os
'nefelibatas'.
Tarr não se descose. Sujeita-nos àquela música mecânica e
aos sons duma tempestade apocalíptica que não pára de moer. O cavalo cumpre o
seu papel de ligação com o 'real' (a loucura de Nietzsche), prosseguindo a sua
greve ao trabalho e ao próprio alimento, como se fosse, de facto, o arauto da
progressiva desistência de todos os seres vivos, face ao sacrilégio absoluto do
filósofo que negou Deus 'definitivamente'. De tal modo, que podemos também
interpretar este 'segundo tempo' da cena
de rua em Turim como a duma metempsicose da razão nietzscheana na alma do mundo
sem Deus, com um equídeo como mediador.
A eficaz poesia desta parábola dá-nos, sobretudo, a
imagem dum mundo tão despido do humano que em momento nenhum lobrigamos o sinal
de algum prazer, por pequeno que seja, em qualquer das personagens principais. Tudo é repetição.
A falta de sentido que leva ao diálogo final em que o pai diz que é preciso
comer, é a melhor 'demonstração' do filme.
Porque não conseguimos imaginar que o prazer (nem que seja devido a uma
suspensão da dor) nos abandone tão completamente. Na verdade, o cocheiro e a
sua lacónica herdeira já estão mortos há muito tempo.
1 comentários:
A sobrevivência é uma antecâmara da morte ou da vida e tudo depende dos "laços" e, portanto, do prazer?
Minutos penosos sim, como é a partilha da miséria e do seu quase inquebrável circulo.
Maria Helena
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