quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

AS IDEIAS-FEITAS

 

"DEPUTADO: Sê-lo, cúmulo da glória. Vociferar contra a Câmara dos deputados. Demasiados fala-barato na Câmara. Não fazem nada."

("Dictionnaire des idées reçues", Gustave Flaubert)

Nesta sua obra póstuma, o autor de 'Madame Bovary' compraz-se em reunir alguns lugares-comuns da linguagem corrente. Algumas definições não mudaram em mais de um século. Como a que nos representa o deputado à luz de uma irremediável inutilidade. Mas, hoje, é corrente ver nessa função menos a glória do que a ambição pelo dinheiro (hesitei em escrever poder, mas este na nossa sociedade é sempre um meio para o 'vil metal').

Agustina ("O mistério da légua da Póvoa") definia Salazar como um desses raros fenómenos de indiferença pessoal pelo poder. Diz a escritora, referindo-se aos 'amigos' de direita do ditador:

"Mas não gostavam dele, suspeitando de que ele não gostava de ninguém e que até os desprezava com aquela desconfiança de provinciano chegado à terra e ao estrito laço de família. Era um homem cujo poder não lhe interessava, o que é mau para os biógrafos que não entendem que o poder possa comportar o espírito crítico."

Mas desviei-me das 'ideias-feitas' flaubertianas, ou talvez não.

Em que é que esta percepção ou esta etiqueta aplicada aos deputados correspondem à realidade?

A mim parece-me que o que está em causa é a perda de valor da 'representação'. Porque ela só é possível se se acreditar no mais 'civilizado' dos mitos políticos: que os interesses dos eleitores podem ser defendidos por um mandatário, por alguém que os represente.

A exposição mediática da Assembleia da República, no espírito 'politicamente correcto' da transparência só podia agravar o défice político da representação. O que se torna patente, pelo contrário, é a substituição do interesse dos eleitores pelo interesse dos partidos. Com a crescente dizimação dos 'independentes' pelo sistema, nem o melhor dos oradores consegue produzir mais do que um bom espectáculo.

 

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