terça-feira, 15 de outubro de 2013

EUNUCOS

 

(Babilónia, segundo David Griffith)

O eunuco não pode regressar. O déspota precisa do sexo dos outros para estabelecer o seu poder sobre a vida e a morte. Que há de tão importante no corpo das mulheres e dos castrados para ter um significado tão profundamente político? Um poder sobre os homens nunca é tão definitivamente expresso como no harém. Pela castração, o corpo é marcado para sempre como objecto do senhor, e o sujeito torna-se um homem sem língua, isto é, sem poder de resposta. Quanto à mulher no palácio, é o número mesmo que a desvaloriza. Ela é verdadeiramente um castrado, menos por razões anatómicas, do que pelo pensamento do gineceu. A concubina entre as outras nem sequer é uma mulher. O harém é um jardim ginecológico. O que aí se perpetua como espectáculo é a confiscação do poder de fazer filhos.

Cambises pode mandar assassinar toda a sua prole. Ele próprio é a imagem da sociedade escrava. Nenhuma humanidade lhe é permitida. Nenhuma sabedoria. A liberdade pode dar-se a um escravo, a uma concubina refractária, mas eles não se tornam livres por isso. Como o eunuco, estão marcados. A castração é irreversível, como as metamorfoses do corpo e o envelhecimento. A tortura é uma “distorção” do mundo e do pensamento.

Portanto, o escravo é ainda escravo doutra maneira. Mas pode pensar-se, esquecer. A verdadeira oposição é interior. De nós para nós. A liberdade não é um estado. Não se concede. Não se conquista como um forte. O escravo sem senhor, somos todos quando a primeira luz do espírito nos faz erguer sobre a natureza. O corpo, eis a memória que é preciso pensar. Este depósito misterioso do universo que se transforma em sonho e realidade. Como é que ele nos faz pensar? Os outros estafetas do fogo sagrado, esperam o corpo para fecundá-lo. E de cada vez é preciso aprender a fugir do harém e a escapar às garras do animal triste.

Alguns eunucos chegaram ao mais alto poder e a sua vingança como que triunfou. Mas o corpo do eunuco tem todas as paixões. A própria genitalidade deve exprimir-se noutro lugar, sob outra forma. Mas é tão forte o preconceito e a imaginação que esse mutilado me parece menos do que um homem sem uma perna ou um maneta. Aqui não é o corpo que falta, mas o símbolo e a palavra.

 

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