quinta-feira, 23 de outubro de 2014

UM HOMEM DE VISÃO?



"Não falando em que, além da organização ou ordenação económica da Europa, há muitas outras coisas de tanto ou maior valor - a independência, a personalidade nacional, a cultura, a liberdade, a religião - e restringindo-nos apenas ao plano económico, eu tenho muito receio de que esta nova Europa não seja mais do que a exploração organizada dos países agrícolas pelos países super-industrializados, na hipótese, principalmente a Alemanha."

(Carta de Maio de 1941 de Salazar ao conde Gonzague de Reynold in "Salazar" de Filipe Ribeiro de Meneses)


O pensamento do outro, daquele contra cujas ideias as nossas próprias ideias se afirmam, não deve ser conhecido, dentro das suas circunstâncias, mas sempre tomado, pelo que o nosso empenho de vida exige que ele seja. Deve ser um pensamento ao serviço dos nossos interesses. Essa conversão nem sempre é fácil, pelo que, geralmente, nos ficamos pela sua caricatura, ou lhe negamos, simplesmente, audiência.

A biografia do homem que simbolizou tudo aquilo contra o que se ergueram o Abril cantado por Ary dos Santos e tantos outros e a 'canção de protesto' que sentimentalmente nos colocava no lado certo da história, foi publicada pelo semanário Expresso. É, talvez, subtilmente 'compreensiva' para quem,  na tese oficial, deveria ser o mais odiado dos portugueses. Sabemos, porém, que isso não é assim, desde um célebre concurso da televisão.

Enfim, um órgão informativo prestigiado julgou que, quase meio século depois da sua morte, se teria dado o tempo suficiente para as paixões políticas acalmarem e se começar a ver mais objectivamente esta figura essencial da nossa história. Afinal o Marquês de Pombal foi da mesma forma odiado e foi muito mais feroz do que Salazar e a República ergueu-lhe uma estátua no coração da capital, gesto que não foi contestado pela democracia. Na mesma linha, ninguém pensa em acusar de assassinato o nosso Príncipe Perfeito (pelo menos o 'revisionismo' ou o 'politicamente correcto' ainda não chegaram aí).

O conteúdo da carta em citação revela-nos algumas surpresas, longe da imagem que o ditador queria dar de si mesmo e da caricatura que dele fizeram os opositores dos vários quadrantes. Salazar não era,  afinal, germanófilo. Chega a dizer desse povo:" A Alemanha tem o gosto da força, da ordem material externa, a obsessão do sistema. Como vai operar este espírito que se assemelha a uma necessidade vital do povo alemão na reorganização europeia se for ditada soberanamente pelo poderio germânico?" (ibidem).

Os receios que a carta a Gonzague de Reynold exprimem podiam ser endossados pelos actuais críticos da União Europeia e até pelos mais realistas dos pró-UE. 

A tentação de reconhecer a  "Nova Ordem Europeia" do tempo do nazismo, na sua versão 'económica', por detrás da construção da UE, é grande, depois da Alemanha se ter deixado 'desmascarar'.

Salazar foi afinal um homem de visão ou o provinciano impenitente e devoto, o guarda zeloso de um galinheiro que já O'Neill gostava que fosse de plástico?


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