"(...) que um indivíduo ou uma classe podem estar errados e desertar a causa comum e o interesse geral, mas o povo necessariamente sincero, e verdadeiro, e incorrupto não se pode enganar; que há um direito de resistência a todos os governos que são falíveis, porque são parciais, mas nenhum contra o governo do povo pelo povo, porque não tem senhor nem juiz, e decide em última instância e sozinho."
"O Contrato Social" (Jean-Jacques Rousseau)
Esta ideia que fundamenta a democracia na própria razão, no contexto em que surgiu, era irresistível. A própria aristocracia, numa nação em que esta metafísica tinha já sido introduzida pelos filósofos e os enciclopedistas, sentiu o 'chão fugir-lhe debaixo dos pés'. Não podia defender os seus privilégios contra a deusa dos novos tempos. Os revolucionários tentarão um pouco mais tarde alargar o culto instituindo uma nova religião.
Talvez nenhum outro 'romancista' na história da literatura tenha conseguido uma tal proeza.
A razão metafísica começava o seu longo reinado que levou os homens às 'utopias reais' do século XX.
Comte dizia que a humanidade conhecia três estados: o teológico, o metafísico e o positivista. A realidade só não lhe deu razão na medida em que esses 'estados' são menos históricos do que psicológicos, e não acabaram no positivismo. Deus não desapareceu com o estado teológico nem a Razão abstracta com a Revolução. As nossas ideias, na forma como surgem e se transformam sofrem o tipo de evolução comtiana.
Rousseau inventou o povo 'sincero', 'verdadeiro' e 'incorrupto', fonte da soberania necessariamente 'iluminada'.
Temos obrigação de saber, depois da experiência histórica e da cada vez mais sofisticada 'manipulação das massas' que esse 'Sujeito' não pode ter aquelas qualidades nem outras nenhumas, simplesmente porque é uma ideia abstracta. Abstracta, mas insubstituível para a própria democracia. E a democracia, de facto, talvez seja o pior dos regimes, "excepto todos os outros"...
Talvez seja por isso que a hipocrisia, na versão etimológica, a que se refere à arte de 'representação', acabe por ser um dever de ofício. É preciso fazer como se.
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