A propósito da pequena polémica, nas páginas do 'Público', entre Rui Tavares e João Miguel Tavares, volta à baila a eterna questão do que distingue a esquerda da direita, qual é a 'alma' de uma e de outra.
Permitir-me-ei tratar os dois articulistas pelo primeiro nome ou, porque ambos têm o mesmo patronímico, pelo Tavares da esquerda e o Tavares da direita.
O Rui é, evidentemente, o mais moralista dos dois e está convencido de que todos têm o dever de mudar o mundo para melhor, mesmo que não saibam o que estão a fazer. Podia acrescentar que advoga, como o ex-presidente Sampaio, o princípio de que 'há mais vida para além do défice', o que só lhe fica bem. Se todos fossem 'certinhos' num mundo tão imprevisível, cairíamos numa espécie de estúpido fatalismo.
O João julga ter os pés mais 'assentes no chão' e prevê que o défice seja como um comboio descarrilado que nos levará a todos para o abismo, se não acertarmos as contas, no que demonstra a desvalorização da nossa história e uma razoável veleidade de profecia, não menos arrojada do que os que prevêem o fim do capitalismo desde os tempos da Primeira Internacional. Também o Tavares da direita acredita numa mudança, mas não é tanto a do mundo, como a de nós mesmos. Infelizmente, pelo caminho da nossa política, parece que só a morte será uma mudança convincente e 'redentora' (afinal talvez haja aqui algum moralismo). Existe por estas bandas uma curta sabedoria que é a de que 'não há almoços grátis', que simplesmente esquece que nem tudo se paga e que existe mesmo uma arte de fazer o mal sem pagar e, mais do que isso, de continuar a receber os bónus. Mas adiante, arrumar a nossa casa, concordo, vem em primeiro lugar.
Assim enormemente simplificadas as ideias (peço desculpa pelo atrevimento), poderemos ainda reconhecer aqui a velha e idealizada dicotomia entre o 'revolucionário' e o 'conservador'?
Mas se um julga que a mudança proposta pelo outro é pouco menos do que cegueira ideológica e equivaleria a acrescentar novos problemas aos que existem... O outro, pela sua parte, considera como puramente dogmática a posição do adversário e suspeita no seu 'realismo' o egoísmo de classe, garante do 'status quo' da injustiça e da desigualdade.
Claro que ninguém faz uma escolha fora de um contexto social e de uma tradição. Mesmo que se pudesse chegar à conclusão de que ambos os 'partidos' têm a sua parte de verdade e são, realmente, complementares, o facto permanece que ninguém 'pode' acreditar nisso, e é natural que assim seja e benéfico que assim seja, numa situação de completa incerteza.
A luta de ideias não é um desporto. É o modo como a democracia se previne dos erros maiores, porque nenhuma opinião (sobretudo a dos especialistas e a dos ideólogos) tem outra prova de validade do que a própria crença nessa ideia. Para além dessa mesma luta ser o melhor motivo para a participação de um grupo alargado...
E agora uma citação de Daniel Kahneman muito esclarecedora:
"Uma vez que tenhais adoptado uma nova perspectiva do mundo (ou de qualquer parte dele), perdereis de imediato boa parte da vossa capacidade de recordar aquilo em que acreditáveis antes da vossa mente ter mudado."
As pessoas não mudam de opinião sem se renegarem um pouco a si mesmas. Parece que isso conta mais para elas do que o amor à verdade. Por isso está garantido até ao fim dos tempos o diálogo de surdos entre dois partidos, igualmente necessários.
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