quarta-feira, 27 de abril de 2016

LUZ DE INVERNO





Em "Luz de Inverno", de Ingmar Bergman (1962), uma das poucas pessoas que assiste à descoroçoada missa do pastor Tomas (Björnstrand) é o pescador Jonas (von Sydow) acompanhado pela sua mulher Karin (Gunnel Lindblom) que pretende que o marido tenha uma conversa com o pastor, no fim da cerimónia. Jonas vive obcecado com a ideia do suicídio desde que soube das intenções do governo chinês de construir a bomba nuclear. Noutro momento, já os dois homens, a sós, Tomas descarrega todas as suas dúvidas acerca da sua vocação e até da própria existência de Deus, num monólogo destrutivo para a crença vacilante do outro. Aliás, depois do encontro na igreja, o pescador põe termo à vida.

A causa da crise religiosa de Jonas (a ameaça chinesa) parece-nos hoje desproporcionada, tanto nos habituámos, entretanto, a viver sob a sombra ameaçadora da insegurança do planeta e da própria insegurança individual. Dir-se-ia um eco da célebre frase da Duquesa de Guermantes: "A China inquieta-me.", transportado do salão parisiense para uma terriola escandinava.

O facto é que esse silêncio de Deus de que se queixa o mau pastor ou a ameaça da China para o seu paroquiano são credíveis graças à arte do mestre sueco. Os admiráveis grandes planos do rosto de Ingrid Thulin têm a mesma força de há cinquenta anos. Thulin é Marta, uma ateísta que em vão proclama o seu amor por Tomas, um amor sem nada que o alimente a não ser a fé.

De resto, a luz de Inverno (do título em inglês) é isso mesmo. Um tempo sem piedade que fustiga o frágil caniço da existência ('le roseau pensant' de Pascal). Tudo tem de vir de uma secreta reserva interior.

Quanto ao título original, 'Os comungantes' ('Nattvardsgästerna'), de que participam todas estas personagens? Estaremos ainda a falar da Eucaristia?




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