terça-feira, 19 de maio de 2015

FUNCIONALMENTE OUTRO





"Plínio tinha sido capaz de sobreviver à tirania de Domiciano e deve ter desenvolvido uma desonestidade funcional. Era uma estratégia de sobrevivência, e não era uma má estratégia. Como veremos a seguir, a insinceridade foi a sua ferramenta de gestão quando era governador da Bitínia-Ponto"
 (C.Sicard)


Uma estratégia de confronto teria sido peferível, numa visão moralista, se não tivesse vida tão curta. Em vez disso, Plínio tornou-se útil aos seus contemporâneos e aos que o podem ler agora, embora com um preço. Não podia seguir certos raciocínios até ao fim. Mais tarde deve ter-se habituado a evitar esses impasses, passando a viver num outro círculo de pensamento.

O tradutor moderno das suas cartas chama a esta anomalia, sempre presente nos actos oficiais, de 'desonestidade funcional'. Aquilo que os jesuítas tornaram conhecido por reserva mental tem, pois, antecedentes históricos.

Há quem compare estas circunstâncias liberticidas aos obstáculos e constrições a que a natureza constantemente nos sujeita. Podemos adaptarmo-nos a um pedregulho no caminho ou à instabilidade atmosférica, sem precisar de argumentos filosóficos, porque é da nossa índole ultrapassar os problemas que o nosso cérebro interpreta como factos da vida.

Uma ditadura sanguinária como a de Domiciano constrange o próprio pensamento, porque não se pode contornar e passar adiante, sendo ela própria uma espécie de pensamento a que, pelo mesmo instinto de sobrevivência de Plínio, é preciso escapar, para que a inteligência e as qualidades morais se possam exercer.

Freud fala em somatização de certos distúrbios psíquicos. A ditadura também somatiza no corpo subjugado.

O governador romano mentia, mas isso era um jogo de todos e que a todos corrompia. O seu veneno perfumado, às vezes, sente-se mesmo nesta correspondência.




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