"Mas as 'mentiras' que o acusavam de proferir estavam a tornar-se realidade em toda a parte: estradas velhas eram reparadas e novas construídas, o mesmo sucedendo com portos, escolas, caminhos-de-ferro e linhas telefónicas, projectos de irrigação, navios de guerra... "É certo isso", escrevia Salazar, e "no entanto, equilíbrio, saldos, diminuição da dívida, estabilidade monetária, reservas, ordem financeira, tudo é mentira - uma mentira amável, condescendente, fecunda, enfim uma mentira que se comporta há seis anos, que se comportará toda a vida, tal como se fosse verdade."
"Salazar" (Filipe Ribeiro de Meneses)
Os movimentos de um homem com demasiado poder criam desordem em toda a parte. As coroas dos monarcas tinham por isso de ser cada vez mais pesadas, quase fixando o humúnculo à sua cadeira. O Napoleão da coroação, na Nôtre Dame, quando resolveu imitar os césares, já não é o ágil cabo de guerra da campanha de Itália. A gordura e o manto de arminho prendem-no ao lugar. Alguns nativos estudados pela antropologia europeia eram bem mais sábios porque fugiam da cadeira e tinham de ser agarrados a ela e engordados como os patos para o 'foie gras' do poder.
O processo simplificou-se muito quando os filósofos românticos descobriram que o Povo era o verdadeiro soberano e que o poder não vinha afinal de Deus.
Salazar não pensava assim e embarcou no mito criado à sua medida do servidor desinteressado e fiel a um mandato que ia para além da própia política.
A citação do historiador mostra, além disso, uma influência do platonismo na doutrina do ditador. É que ele considera que a política tem necessariamente de mentir em nome do bem comum. O que diz sobre as finanças do país é estranhamente actual. Ele sabia que o estado real das finanças e da economia não era o mais importante. Podia viver-se perfeitamente na ilusão de que não havia problemas de maior, desde que tal ilusão merecesse crédito.
O 'castelo de cartas' que a falência dos Lehman Brothers fez desabar é que rompeu com a situação sonâmbula. E, no nosso caso, verificamos que a mentira da solução inventada pela Europa (ou pela Alemanha) cumpriu, apesar de ter falhado, o que se esperava como objectivo final: o regresso, ainda que ambíguo, à ilusão útil a que se refere Salazar, isto é, ao crédito.
O que mudou foi que já ninguém pode dormir com os dois olhos fechados.
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