segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

PILATOS


"Crê-se  facilmente  que  o  homem  se  libertou  de  si  próprio  desde  que  descobriu que  não  se  encontra,  nem  no  centro  da  criação,  nem  no  meio  do  espaço,  nem talvez  no  cume  ou  no  fim  da  vida.  Mas  se  o  homem  já  não  está  como  soberano  no mundo,  se  já  não  reina  no  centro  do  ser,  as  ciências  humanas  são  intermediárias perigosas." 
(Michel Foucault)

Qual é o sentido deste perigo na 'intermediação' das ciências humanas? Obviamente, o de nos iludirmos quanto ao seu valor de verdade. Haveria, pois, uma 'lucidez' já conquistada pelo homem, uma 'terra firme' donde poderíamos lançar todas as expedições do pensamento.

Isto é, afinal, muito cartesiano.  Também o filósofo do moderno 'cogito' estabeleceu 'de uma vez por todas', junto à sua lareira e abstraído do mundo exterior, focado apenas, tanto quanto supunha, no seu pedacinho de cera, o que era evidente para o seu espírito. Podia dizer-se que, a partir desta radical abstracção, era legítimo derivar todo o mundo racional (bem como, certamente, o mundo privado da razão).
Está aí o princípio de todo o nosso desenvolvimento científico. Na condição de se 'recalcar' esta  evidência assente na 'vontade de saber', como diz Foucault, o perigo de nos iludirmos com as 'ciências humanas' seria apenas o de nos afundarmos num mesmo antropocentrismo doravante 'descentrado', que não se assume como 'dissecação' da realidade.

Nos tempos que correm, em que a verdade parece multiplicar-se em sub-espécies dissidentes, num relativismo absoluto, dir-se-ia que todos sentimos a necessidade de um novo mito congregador. O mito é, afinal, o nosso 'líquido amniótico'. Vivemos banhados em mitos de todo o género, com pretensões à verdade e que contribuem para reduzir a verdade a uma substituição de máscaras.

E, por fim, parecemos condenados a repetir a pergunta de Pilatos: 'o que é a verdade?' Pilatos era um homem sem fé, diz-se por tradição. Mas era tão crente em Roma, como os outros romanos. Roma estava perdida na sua decadência. Como poderia ele, um homem do poder, acreditar numa nova fé?

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