terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A DESTRUIÇÃO DOS BUDAS





Nada parece mais 'lógico', em tempos que privilegiam a eficiência da comunicação, do que 'libertar' a linguagem humana de toda a ganga poética e literária, de todo o folclore primitivo, enfim, de uma complexidade que só pode trazer 'ruído' e ineficiência ao objectivo de uma comunicação reduzida ao estado da informação 'binária', ou que tende para esse estado.

Dentro do grande tema da Educação, poderíamos assim deter-nos um pouco numa das mudanças impostas pelo ambiente cultural e técnico que é a passagem do 'aprender brincando' que caracterizou este tempo de 'co-habitação' com algumas das mais fascinantes invenções de sempre: o computador, a rede e o 'smartphone', para a nova realidade da sociedade digital, muito mais 'lacónica', mais atenta aos resultados de um teste instantâneo, do que ao processo de aprendizagem, porque o tempo é um lastro que é preciso sacrificar. Parece a paixão pela velocidade dos 'futuristas' do princípio do século XX.

Em tempos que agora nos surgem como os de uma simplicidade 'bíblica', era mais fácil surpreender o aluno com alguns truques de magia, ao alcance de um contador de histórias ou de um ilusionista. Mas terá sido, alguma vez, esse pequeno fumo o suficiente para interessar os 'melhores', aqueles de quem dependerá levar a ciência e a ética a novos patamares? Falamos, claro, de uma verdadeira elite.

O que mudou na velha questão  do 'aprender brincando' foi a noção de brinquedo. Dantes, criticava-se, com boas razões, uma prática de ensino que, para interessar, apelava, não ao que o aluno tinha de mais eminente (a sua coragem e a sua curiosidade intelectual), mas às técnicas de sedução, que prolongavam, por assim dizer, os expedientes com que sempre se procurou atrair a atenção  das crianças. No fundo, essa  tradição deixava a reprodução das elites ao sistema dos privilégios sociais, ficando o 'povo' com o 'quantum satis' de educação.

Isso, porém, não é mais 'actual', visto que a existência da própria elite dos privilégios deixou de estar garantida,  e para a substituir, perfila-se já uma coorte de 'gestores-utilizadores', sujeita ao 'numerus clausus' da eficiência técnica. Com isto se compatibilizando, aliás, o princípio da indistinção e da 'igualdade democrática' que, na verdade, nada estipulava sobre a questão do poder, como se na ideia de uma sociedade racional estivesse  implícita a  inevitabilidade do mesmo, de cujo abuso a democracia liberal sempre se poderia defender pelo célebre sistema dos 'checks and balances'. Em termos de justiça relativa, esta política educacional demonstrou, aliás, a sua perfeita adequação ao capitalismo moderno.

Mas, entretanto, a revolução tecnológica que nos empolgou e arrastou para o grande desconhecido tornou caduca a própria ideia de uma elite intelectual. A verdade é que à medida que as nossas 'máquinas' se tornam mais 'inteligentes', é a elas que, 'naturalmente', se pede que exerçam a função da elite. Não é o caso geral ainda, mas a tendência é irresistível. Primeiro vêm os 'robots' auxiliares, depois, chegará a vez das mais complexas funções, as mais típicas do 'animal racional'. 

A ideia de 'aprender brincando' surge agora como qualquer coisa de incompreensível.  Porque a 'brincadeira', no entrementes, se tornou, pela sua finalidade, uma coisa muito séria, em termos económicos e sociais. A sedução não se apresenta como servindo os objectivos de um ditador tecnocrata ou de uma casta financeira ou tecnológica, mas como indo ao encontro da ideossincrasia e das inclinações de uma nova categoria de indíviduos: os consumidores, indivíduos livres (que, ao contrário dos 'radicais livres' da química, perdem as suas 'características' perante a astúcia do 'marketing e de fenómenos como o populismo ).

É assim que a educação tende cada vez mais para deixar de ser focada num processo de aprendizagem, e passar a ser um simples teste técnico (o passo anterior de uma dispensa geral do intermediário humano). O Twitter e outros programas estão aí para anunciar o futuro, com a sua espantosa capacidade para destruir a linguagem e, do mesmo passo, a própria política.

Nunca se imaginou, antes, que uma sociedade cuja linguagem se reduzisse ao Morse pudesse servir no mundo artificioso da diplomacia. Vivemos o suficiente para ver que os novos bárbaros não vêm de fora, nem de uma casta decadente que oprimisse os cidadãos. Estamos a entregar os tesouros da cidade a quem por eles tem o mesmo respeito dos demolidores pelos budas de Bamiyan...

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