sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

ANIMULA VAGULA

É verdade o que diz Adriano de só os velhos terem o privilégio de abandonar a máscara. Querer agradar talvez seja mais do que um pecado das outras idades, um acordo de paz para guardar o domínio de si próprio. O velho e o doente conhecem a experiência mais profunda da solidão. A morte só aceita a visita do homem nu. Nada de companhia frívola ou zelo amoroso. E o corpo, através da doença, aprende a separar-se dos homens.

Contudo, é preciso frequentar o pensamento dos séculos para conservar os olhos abertos na entrevista solitária com a dama de espadas. Por isso me parece que a autora tem razão ao dizer que é possível viajar no tempo recorrendo à forma humana. E o século II é ontem, é o passado duma maneira geral. A infância é um mito irredutível. Por muito que se limpem e componham as ruínas, não encontraremos habitantes. E a palavra que nos indica uma passagem, o contacto dum povo é ainda pedra sobre pedra. O homem que nos fala atravessou as eras da humanidade. Como a célula permite a reconstituição do corpo, no homem há um resíduo da história. Este fragmento poético tão íntimo, cheio de diminutivos, animula, vagula, blandula é o diapasão que identifica a verdade dum sentimento e duma sensibilidade. A poesia abre-nos o coração do homem, como a ideia da infância nos desarma e despe aos nossos próprios olhos.

Yourcenar, para escrever a história que compreende a “animula” e o imperador – esta tradução do sentimento no mundo da política, a reunião da sensibilidade e do poder, para além da consciência do homem sem Deus, característica deste período, segundo as notas da escritora, é o motivo da obra como se adivinha – deixa-se tomar pela personagem pouco a pouco recriada a partir do núcleo poético, das leituras e dos documentos. Ela tenta pensar o romano como coisa sua. Com o amor do passado pessoal. E se é evidente que haverá tantos Adrianos como os médiuns que convocarem o seu espírito, isso não é apenas uma fatalidade dos séculos que nos separam.

É fatal que aconteça porque se conta a vida. Adriano seria o primeiro a trair-se. Mas é o espírito que é verdade.

 

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