Chamaram-me a atenção, num debate, para a espécie de injustiça que é feita, por toda a espécie de 'leigos', incluídos os leigos de esquerda, às inúmeras provas de civismo demonstradas pelo partido comunista e ao seu utilíssimo papel (utilidade, pelo menos uma vez reconhecida, por Melo Antunes) na nossa democracia. Pode ser uma utilidade de 'pára-raios', mas ao canalizar as potenciais formas de violência e ao proporcionar uma utopia política que resistiu ao que todos sabem ou julgam saber sobre Staline, não há dúvida que é um infatigável desafiador da 'democracia real'.
A razão para a 'menoridade' do partido em relação às suas expectativas de governação parece estar, por um lado, na sua incapacidade de se posicionar criticamente em relação ao seu próprio passado e, sobretudo, ao passado do movimento comunista e aos resíduos que subsistem, mais ou menos descaracterizados. Por outro, à interiorização dessa menoridade e da função 'profilática' que o sistema partidário lhe destinou.
Mas a ideia de que a versão laica da história soviética é o principal 'trauma' que impede a credibilidade dos comunistas para disputar o poder em 'pé de igualdade' com os outros partidos pode ser uma ilusão. O partido muda - é fatal, mas não pode dizer que muda (tenha-se em conta o que aconteceu aos restantes partidos comunistas europeus, seduzidos pela 'transparência' que Gorbachov viria a chamar de 'Glasnost').
Podemos traçar um paralelo com a Igreja Católica que teve também, durante vários séculos, uma organização parecida com a polícia política e os seus ubíquos denunciantes, e que foi, talvez, nesse período, o primeiro modelo do totalitarismo. A Igreja foi obrigada a corrigir-se, a 'separar as águas' entre o que é de Deus e o que é de César, sem ter necessidade, no longo tempo que se seguiu, de vir dizer aos crentes que errou. Hoje ninguém acha a Igreja capaz de tais atrocidades. E os crimes desse tempo nunca impediram a missa.
Ora, apesar da analogia, esse é um passo que o partido comunista não pode dar, porque não pode retirar-se para o espiritual. Assim, prudente como é seu timbre, julga que pelo silêncio pode, como a Igreja, evitar o ajuste de contas com a história e com a actualidade. Pode ser que dentro de duas gerações esteja irreconhecível e consiga, de vez, largar a sua menoridade. E que enfim seja capaz, embora perfunctóriamente, de fazer a autocrítica que hoje em vão reclamamos.
De resto, os crimes desta dimensão são inexpiáveis e todas as 'desculpas' que se possam apresentar são inanes. Que o diga a juventude alemã para quem o próprio holocausto já diz pouco, nem a pode implicar.
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