É por 'parti pris' que sabemos que o cinema não é a vida. E nenhuma vida se deixa contar, embora o que sabemos se limite, talvez, ao que podemos contar, e a apenas isso.
Assim, se entra de chofre na vida de Jorge, um dos muitos rostos da crise social (são os anos da Troika) que Marco Martins, o realizador, escolheu para guia de uma descida aos infernos. Os socos da vida e os do ringue de subúrbio mal nos deixam respirar. Todos os deuses parecem conjurados contra este rapaz sensível que resiste à claustrofobia do meio familiar, em que um pai se recusa a ser 'freudianamente morto', e o quer separar da namorada negra, a única ligação a outro círculo 'exterior'.
Além do boxe, a que não se entrega com a vontade ou o desespero suficientes, para pagar as dívidas, força-se a uma actividade semi-legal, florescente na época, a das 'cobranças difíceis'. O seu fracasso no novo 'emprego', por não conseguir abstrair-se da sua compaixão pelas vítimas, oferece-nos uma última imagem de incerteza e impasse, junto à linha férrea, em que a sua primeira tentativa de 'cobrança' levara o torcionado ao suicídio.
Uma legenda dá-nos conta no final de que foram criadas nesse período quase duas mil empresas de cobrança que, apesar das suas práticas abusivas e muitas vezes criminosas, foram toleradas pelo poder político. Perante a riqueza do drama, porém, esse contexto chega a ser irrelevante, tanto quanto qualquer reinvindicação de 'realismo'.
Há no filme 'S. Jorge' e no intérprete Nuno Lopes, a força suficiente para ser algo de memorável no cinema. Os temas que se entrelaçam (o dos conflitos de espaço entre pai e filho ou o de um submundo condenado pela crise e por um 'destino' já interiorizado pela cultura popular) são, na verdade, cifras de uma impotência que parece definitiva, face às forças subterrâneas que movem as personagens, forças das quais fazem parte - não é verdade? - os próprios sonhos e a própria 'liberdade'.
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